CONTA-GOTAS
A água que pingava anunciava os segundos, como um relógio ajustado, insistente, infinitamente endoidecedor. E gotejava, aquela água suja, do teto até o balde que Eulália havia depositado na trajetória do contador de tempos, enquanto esbravejava para dentro de si sobre os relaxos dos vizinhos do apartamento de cima. E o balde logo transbordaria uma tarde toda, e Eulália viria esvaziá-lo para, novamente, resmungar sobre os descuidados dos irresponsáveis, onde é que já se viu trocar piso e não arrumar vazamento, ora essa, e sobra sempre para o coitado de baixo, ora essa...
E atentaria para o teto a menear a cabeça em reprovação, e a água além de tudo suja, e o teto pode desmolengar um buraco grande, olhe só esse gesso apodrecendo, bem no meio da minha cozinha, meu Jesus. E então miraria os olhos apertados em meu prato de bolachas de aveia e meu copo de café muito doce, muito açúcar para um velho diabético que não sabe se cuidar, bem capaz de morrer antes mesmo de esse teto desabar em cima.
E veio pela porta da sala, passou por mim e pelo balde sem notar a rotina já se posta ali como a mesa retrátil de nossas refeições diárias ou a fruteira de canto abarrotada de mamões para o correto trabalho do intestino ou o sabão-pedra a derreter-se numa pequena poça de água dentro da pia. Voltou da lavanderia trazendo um outro porta-gotas, menor que aquele prestes a romper fronteiras de tempo e espaço, fez a troca e saiu a murmurar maldições para cima.
_ O homem do conserto não veio, Eulália?
Não tive a voz de Eulália, mas ouvi a água jorrar no tanque, todos aqueles segundos a escorrer pelo ralo, sem destino ou passado que os valesse a existência conformada, incessante e burra. E eu me senti ainda mais como aquele balde, repleto de tempos a esmurrar seus limites, a pressionar a vida em toda a sua superfície, e prestes a transbordar como uma alma em despedida. E então, antes mesmo da última insinuação, o jorro. Um correr de momentos e rotinas e olhares e diálogos e banhos e caminhares e tudo, que recicla a vida como se houvesse a possibilidade de moldar a explosão do tempo. Do meu tempo.
Eulália voltou à cozinha e esbarrou em meus pensamentos. Afinou os olhos sobre minhas bolachas e o café com muito açúcar, previu a infeliz fortuna que me assolaria mais rápido que ao teto apodrecido pela água, e girou os passos a caminho da porta que ligava cozinha com sala. Eulália era linda, as gotas de sua vida só fizeram enchê-la ainda mais de graça, e era então nestes últimos anos que ela transbordava delicadamente.
_ O homem do conserto não veio, Eulália?
Ela virou-se e experimentou um sorrir de ternura pacienciosa. Pois não via que a água ainda pingava, ora homem? Sim, minha querida Eulália, eu já havia visto a água e o teto e o balde e os vizinhos irresponsáveis. Só queria agora era ver os seus olhos sorrirem para mim...
1 Comentário
Mariela sempre escreve com graça e propriedade, isso me fascina... Vi-me sentada ali a receber os respingos da água suja que gotejava do teto, nos resmungos de Eulália, tentando moldar a explosão do tempo não dele, mas meu...
Beijos
Teresa Azevedo
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