DESLUMBRAMENTO
Calma. Após a sensação do êxtase completo que preenchia cada gota morna do meu sangue chulo, a correr desde o estômago à base do pescoço, alternando entre quente e frio as pulsações no pé do ouvido, e os engasgos de realidade que insuflavam meu peito murcho e sem vida. Mesmo assim era o êxtase, o deslumbramento de cada golpe de agonia e desengano a aflorar pelos dedos como um prolongamento da alma.
E agora era a calma. A observar de longe meu corpo jogado no canto da sala, como preenchido do alívio que sucede o orgasmo, as extremidades em calafrios, e os lábios em fogo de uma misericórdia inerte e traiçoeira. E nos momentos em que permaneci com os olhos fechados é que pude sentir a sua vida quente, agarrando-me pelas pernas como se pudesse evitar o destino, como se fosse eu a amparar-lhe as súplicas insignificantes a meus ouvidos vivos.
E foi então que voltei a observar-lhe. Deitei a cabeça para o lado a fim de aconchegar-me naqueles instantes e abri os olhos em busca de seus cílios ruivos. E ali estavam: você e sua beleza, como se para existirem uma inspirasse o ar que a outra expirava, num casamento harmônico e quase incestuoso. Mas sua vida se agarrava aos meus pés agora, e mesmo assim ali estavam: você, querida Beatriz, e sua beleza.
E também as suas orelhas tão pequenas, emolduradas pelos anéis de sua ruivisse agora tão viva e maravilhosa. Talvez ainda ecoasse minha loucura dentro desses ouvidos, os seus gritos, os meus gemidos. E talvez os seus lábios finos ainda sentissem o viço de minha saliva, e os meus beijos fossem as suas últimas palavras. E mesmo que meus dedos toquem seu pescoço nesta hora, não as conseguiria proferir.
Sim, minha querida Beatriz, talvez esta tenha sido a nossa última obra de amor. E enquanto a observo daqui, você mal tem forças para piscar os olhos, embora esteja sorrindo. Será que suas pernas ainda serão capazes de se deleitarem com este formigamento fascinante que percorre todo o meu corpo? Estou certo que não, do contrário você não permitiria que sua alma se agarrasse a mim desta maneira.
O seu sangue, meu amor, o seu sangue é o mais belo de todos. Confesso que me apavora a ideia de que seja ele o responsável por toda essa sua beleza. Se assim o for, logo você será nada além de uma mulher como todas as outras, uma vagabunda fútil e ordinária, e pode ser até que se levante deste nosso chão e ponha-se daqui pra fora, livrando-me desta dolorosa saudade.
Mas, Beatriz, nós já temos sangue o suficiente para banharmo-nos em perfeição. E, no entanto, eu é que continuo este imbecil desprezível e roto, enquanto você permanece luminosa como quando, pela manhã, ofuscava até o sol que deslizava em silêncio pelas frestas das cortinas e banhava os dedos tortos de seus pés de bailarina.
Começo a crer que era você, minha querida, que emprestava essencialidade às coisas tão belas deste mundo. Pois agora que seu sangue já esfria neste chão duro, as estrelas começaram a despencar do céu como se fossem fetos a desgarrar de úteros secos. E o seu corpo agora chora lágrimas rubras pela morte de qualquer esperança neste meu coração tolo.
Enquanto a observo, silencio todo impulso que possa devolver-lhe os pensamentos. Estendo um braço a buscar o toque viscoso de sua vida que já se deixa estendida sob meus pés inertes, em desistência sutil. Esfrego os dedos uns nos outros como se procurasse saborear um tanto de sua entrega, e então o pavor de não senti-la começa a corroer-me a alma, e o caldo disso é um jorro de remorso.
Foi rápido, o nosso último feito de amor. Como tem sido rápida a nossa vida e sua passagem pelas minhas lembranças neste momento. Talvez pela ânsia de não perdê-la de vista um instante apenas, você caminha em minha mente em diferentes sentidos, e vestida de tantas formas, e a carregar tantos sorrisos, e tantas lágrimas, e tantos toques. Por vezes somos cúmplices, por outras amantes em descompasso, minha querida Beatriz.
Tantas foram as vezes em que nos perdemos no caminhar... Como se nossos passos destoassem da expectativa de seus destinos, e você continuasse a travessia enquanto eu a interrompia, a buscar um sinal de que aquele fosse o chão certo a bater, de que o fim que me aguardava fosse brando, de que o universo abençoaria meu viajar.
Você se lembra, amada, como eu sempre fui muito mais entregue aos anseios e tempestades da vida? E de como você me olhava a analisar todas essas crendices de que sou feito, vezes decepcionada, vezes admirada por uma masculinidade tão ironicamente sentimental. O que me diria você agora, se seus lábios não estivessem presos naquele instante, o que diria ao ver-me tão calmo ante a sua partida?
Por esse seu sorriso nas esquinas dos lábios, talvez lhe toque a impressão de finalmente ter conseguido convencer-me pelos olhos da razão, dessa sua razão burra e apática, meu amor. Mas não, não se engane. Essa calmaria toda que me absorve é tudo aquilo que vem depois do temporal que a paixão por você revira dentro do meu ser.
E é desta forma, exatamente desta forma, que eu consigo descobrir os grãos que você foi ocultando a cada passo infecundo de sua trajetória geometricamente fria. Mesmo que seu toque acalmasse minhas aflições, mesmo que seus lábios calassem o pranto de minha alma assustada, mesmo que seus cabelos ardentes acolhessem os meus ombros desamparados.
Pois eu sei, Beatriz, que há muito já não me ama. E digo isto como uma forma de acertarmos o nosso caminhar, como temos feito desde que entrei por esta porta pela manhã. Por isso não me olhe com estas lindas pedras verdes marejadas, não há mais oceanos entre nós. É noite e não há mais águas por onde navegarmos, pode fechar seus olhos agora.
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .
2 comentários
Mariela,
Texto aos jorros.
Um beijo!
Lindo assim, como só você escreve.
Beijoo!
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