quinta-feira, 1 de setembro de 2011

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CONTAÇÃO - "Inevitável" (por M.Mei)






INEVITÁVEL

Entrou na farmácia correndo, o engasgo da última respiração que guardava desde a outra esquina. Não tinha muita certeza de como agiria perante o que parecia ter se tornado então inevitável, ou na verdade já tivesse mesmo sido um caminho sem volta desde aquela manhã em que concordara com Carlos, apesar do coração apertado. Não saberia como agir, mas era esmagadora a certeza de que já não desejava aquilo tudo. “Tarde demais, Lidia” – foi o único pensamento antes de se dirigir à balconista.

“Por favor, me dê um teste de gravidez”. Gravidez, gravidez, gravidez... A palavra ecoava com a força de um golpe em seu próprio estômago. “A senhora tem preferência por alguma marca?” – Lidia ficou olhando para a balconista sem entender. Marca? Quantas marcas existem desse negócio? Como se não bastasse todo o redemoinho dentro de sua cabeça... Ter de escolher marca daquilo que seria o anúncio de sua sentença final já era um exagero sádico. “Qualquer marca, moça! Me arrume um que saia o resultado assim, rapidinho...” – Lidia pensava que a revelação de seu destino teria de ser súbita, nada de enrolação, como quando o pai amarrava-lhe uma ponta de barbante no dente amolecido e a outra na porta, e então fechava a porta com força. Sem dor. Só o susto.

“Leve este então, não precisa esperar a primeira urina da manhã, e você pode fazer a partir do quinto dia de atraso da menstruação” – Lidia sorriu a contragosto para a vendedora, pegou a caixinha rosa e dirigiu-se ao caixa, pensando que se tivesse prestado maior atenção em si mesma poderia já ter realizado o teste há um mês. Mas Lidia estava ocupada demais com todas as coisas do mundo, os pais e a reforma da casa, o contrato de dois milhões com o novo cliente da empresa, e apenas não reparou naquela ausência tão importante. Justamente ela, que todos os meses sofria caixas de bombons, calmantes e analgésicos, não notara a bonança daquele outubro.

Demorou alguns minutos para ligar o carro e enfim dirigir-se para casa. De alguma maneira, a tática da revelação imediata não parecia tão interessante àquele instante. Talvez porque Lidia sabia que fato ignorado é fato inexistente. Mas o que se apresentava não poderia ser ignorado por muito tempo, e certamente não passaria por inexistente. Se não fizesse o teste poderia então viver por mais alguns meses na ilusão de que sua vida não assumiria aquela direção e que a coragem que lhe faltara para deixar Carlos há seis meses não seria então sufocada para sempre, e ela poderia finalmente ser feliz. Se não realizasse o teste, se não houvesse a necessidade de realizá-lo. Mas a necessidade só se jogava em cima de Lidia com uma certeza: a de que o único caminho era o que estava à sua frente.

Lidia encarou a caixa rosa e abafou o grito no topo da garganta. O descontrole não seria a solução para o momento. Bastavam-lhe os episódios de choro no escritório ou os berros com Carlos pelo cigarro que nauseava-lhe todo o ser. Se tivesse ao menos prestado atenção aos primeiros sinais... Mas o estalo da desconfiança só bateu em Lidia quando Mariana lhe contou sobre o novo anticoncepcional que usava “Eu não menstruo mais, graças a Deus! Pra que aquela sangria toda... Tá certo que ele dá uma inchadinha, mas eu estou achando muito bom, agora finalmente eu tenho peitos e bunda. Sabia que outro dia, lá na cafeteria da empresa, o Rogério encostou em mim...” – aquela oferecida da Mariana! “Tem homem por todos os cantos, ainda vem jogando charme pra cima do meu Carlos”.

Lidia tinha dó de Mariana. Filha única, o pai morrera muito jovem e a mãe se casara novamente com um vagabundo que se sustentava do salário da esposa e mais tarde também do de Mariana, que começou a trabalhar como ajudante na biblioteca aos quinze anos. Muito magrinha, se desenvolvera tarde, ou nem ao menos se desenvolvera. Mas o padrasto já via nela a mulher bonita que começava a desabrochar em meio às espinhas da adolescência e ao andar ainda desajeitado. A primeira vez de Mariana fora com ele, e as trinta e sete vezes seguintes também, todas traumaticamente empenhadas quando a mãe fazia o turno da noite na fábrica ceramista.

Foi em um desses dias de turno noturno que a casa delas pegou fogo com o padrasto dentro. Os bombeiros encontraram Mariana parada em frente à grande fogueira, atônita, com as roupas rasgadas e abraçada ao travesseiro. Todos da rua sabiam o que havia se passado naquela noite, mas por compaixão ninguém se atreveu a dizer uma só coisa contra a menina. Com anos de terapia e a amizade de Lidia, a adolescente conseguira reerguer-se e transformar-se numa mulher bem sucedida profissionalmente. Mas, talvez em decorrência do abuso ou mesmo de seu trágico e necessário fim, Mariana ainda se equilibrava numa afetividade construída a partir de cacos de si mesma.

O elevador do prédio nunca fora tão lento, e se o percurso tivesse levado mais alguns segundos, Lidia teria chutado a porta. O pânico de se ver presa em lugares fechados também não ajudava, mas naquele momento o medo resignado que crescia dentro de si era outro, muito mais real, muito mais próximo. “Merda, onde coloquei essas malditas chaves?” – derramou no chão em frente à sua porta a vida que carregava dentro da bolsa, e pode então ver as chaves que procurava ali, reluzindo entre o batom, a carteira e a cartela de analgésicos. Abriu a porta, varreu com a própria bolsa os pertences para dentro do apartamento e correu para o banheiro.

Não melhorava absolutamente em nada o pensamento no destino iminente, acenando-lhe do peitoril da janela, a observar a cena ridícula da tentativa de urinar com as pernas arqueadas para que conseguisse acertar o bastão de teste. O líquido não saía, e as pernas já tremiam, mas Lidia não se renderia. Saberia o resultado naquele dia, não havia fugido mais cedo do trabalho para que Carlos não estivesse em casa na hora do pronunciamento de sua inevitável sentença.

“Cinco minutos...” – cinco minutos que poderiam conter a eternidade dentro de si. “Quatro minutos...” – o coração de Lidia parecia que tentava um último suspiro de esperança, que nada daquilo fosse verdade, que tudo voltasse a ser como antes. “Três minutos...” – o filho sonhado que se transformara em dúvidas e receios quando ela percebera que seu amor por Carlos já não era mais o das tardes de Ouro Preto. “Dois minutos...” – a vontade de ser mãe que se esvaíra de Lidia antes mesmo que o marido percebesse os sinais do fim. “Um minuto...” – o coração se acalmou, como a paz absoluta que vem para anunciar a chegada da morte. Lidia olhou o bastão do teste e derrubou-o no chão ao ver Carlos encarando-a da porta do banheiro.

******

“Você está grávida, Lidia?” – Carlos a encarava da porta do banheiro – “Heim, Lidia, você está grávida?”. A mulher jogou o bastão dentro do lixo e, enquanto subia as calças, tentava inutilmente se recompor. “Não, Carlos. Não estou. Com licença, deixe lavar as mãos” – Lidia levou longos minutos no ritual de higiene, desligou a torneira e agarrou uma toalhinha nova no gabinete embaixo da pia. Sem levantar os olhos, por medo de encarar o marido ou mesmo por vontade de demonstrar o desprezo, vomitou-lhe a ironia: “Ainda bem, não é mesmo? Um filho a esta altura seria no mínimo loucura!” – e saiu do banheiro em pressa, a atropelar os pensamentos e a fala de Carlos.

“Talvez isso fosse uma esperança, não sei...” – murmurou o homem com o cuidado de não ser ouvido. Ao que a dúvida e a necessidade do perdão o incomodaram a ponto de atirarem-lhe ao cesto de lixo em busca da confirmação. E não foi então o rosto de Carlos que esbranqueceu, mas sua razão. “Você está grávida, Lidia, por que mentiu para mim?” – chorava de cócoras, a ancorar-se na parede em frente ao vaso sanitário, como se aquele fosse seu cais. “Lidia, você está aí?” – Carlos não se atrevia a erguer o corpo doído pelo atropelamento da verdade. “Lidia, meu bem...”. Ouviu ao longe a porta da frente do apartamento bater, o silêncio em sua face, e a dúvida, e nada.

Lidia entrou no elevador também em lágrimas, na mão trêmula dinheiro suficiente para o táxi. Ganhou a rua e sentiu-se leve. Passou pelos táxis do ponto próximo ao seu prédio, mas não parou, nem sequer pensou nisso, Não! Se tomasse um daqueles carros, Carlos a encontraria afinal – todos os motoristas conheciam o Sr. Vallejo, não fosse pelas corridas até o aeroporto, certamente seria pela cumplicidade nas escapadas em dias de hora extra de Lidia. E por esse motivo, para poder desaparecer de vez do mundo pelo menos por enquanto, a mulher desenhou passos largos por mais cinco quadras até o próximo ponto, o da pizzaria Soggiorno.

“Moço, por favor, me leve até a Rua Jaguaribe, na Santa Cecília, alguns quarteirões pra cima da Santa Casa. Eu digo onde parar” – pediu, mas era como se suplicasse. Os sentimentos que Lidia experimentava eram todos velhos companheiros, novo era o turbilhão resultante de seus embates. O coice da notícia e o conforto de sabê-la só, e o atropelamento dolorido pela descoberta de Carlos a observar, e a adrenalina de ser surpreendida, e o fim da única esperança. Tudo revolvia a vida de Lidia. E a própria vida, embriagada de realidade, sacudia a redoma de cristal que a envolvia, e os por quês esmagavam-lhe os ombros como neve de purpurina. Nunca estivera tão só e confusa como naquele instante.

“Já estamos na Jaguaribe, moça” – o taxista a olhava pelo espelho retrovisor. “Ainda não... ali, em frente àquela banca. Isso. Obrigada, aqui o dinheiro, pode ficar com o troco” – e saltou do Vectra antigo, batendo a porta à suas costas. Olhou para o alto, como se a procurar alguém nas janelas enormes do prédio. Constatou que o apartamento no quarto andar tinha os vidros escancarados. “Ele deve ter esquecido as janelas abertas, é melhor eu ir embora” – mas a razão em alta voz não convenceria Lidia a desistir do que o coração estava prestes a fazer. Avançou três passos e alcançou o interfone. “Quem é?” – a voz masculina que saía do aparelho. “Sou eu: Lidia.” – a resposta crua, despida. O apito e o ruído metálico do portão se abrindo. Lidia tomou o elevador.

O prédio era antigo e, por isso, o elevador ensaiava a ascensão em preguiça. Talvez tivesse sido mais rápido tomar as escadas, mas o apanhar dos degraus encardidos representaria uma distração no sofrimento de Lidia. Por isso que, como se merecesse a confusão e a agonia, a aniquilação completa de seus planos, ela resolveu gastar os minutos no cruel trajeto, que terminou antes mesmo de Lidia repassar as palavras que estava prestes a proferir – e ferir. Procurou a campainha, mas preferiu bater na porta.

“Lidia? O que aconteceu? Não tínhamos combinado amanhã?” – o homem sem camisa, provavelmente uma dezena de anos vividos à frente de Lidia, a puxou pelo braço para dentro do imóvel. “Sim, mas eu tinha que lhe falar uma coisa” – esclareceu ao movimento que livrava-lhe o braço gelado. “O que é, menina? Algum problema?”. Lidia, em voz de vapor, mas fria, golpeou: “Eu estou grávida, Frederico, e você é o pai”.


(este texto, aqui apresentado como conto, integra o folhetim "O Último Tango", publicado em GraçaDesgraça.com)



Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .

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