domingo, 16 de outubro de 2011

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Arrastão - Sonia Regina

Não era todo dia que Lips[1] soprava pela janela. Vinha sempre da lagoa, esse vento sudoeste. Cesar o amava e naturalmente aprendera os pontos cardeais. Aprendera: um pretérito mais que perfeito estava no comando de seu presente defeituoso.

“Estamos no sul!” dizia entusiasmado quando criança, após conhecer a Rosa dos Ventos. Somente riam. Mesmo quando ele começou a substituir ‘esquerda’ por oeste e ‘direita’ por leste.

Na 5ª série soube dos outros ventos, na aula de História. Com o estudo da mitologia grega começou a dar outros nomes para as coisas da natureza: “Por que Lips é tão zangado, se vem de uma região entre as comandadas por Zéfiro e Nótus[2]?” Ignoravam-no e ele nunca soube o porquê, se não conheciam o nome dos ventos ou se era assunto de menor importância naquela rotina monótona. O padrasto era o único que se dignava tocar no assunto – tentando dissuadi-lo de tantas questões. “Deixa pra lá, meu filho. Vem. Vem comigo pescar, o vento é bom. Sente sua brandura, inspira. Vê que gostoso...” Embora adorasse o padrasto e admirasse a pesca de arrastão, não ia. Para Cesar as ações não davam prazer algum: preferia imaginar. Pensar. Provocava a memória até que ela viesse, num arrastão: como os peixes da rede de Lúcio, como as folhas quando batia o sudoeste. Misturadas e vivas.

Foi crescendo com aquela sensação de diferença.

Sem irmãos, brincara sozinho. Não havia crianças na vizinhança e a família Romano morava longe da cidade. Cesar vivia com a mãe, o padrasto e o avô materno.

Um avô com sotaque italiano, severo e rígido, inibia-o constantemente. Lembrava-se de uma vez em que riram muito na hora do almoço, ele e o primo, de uma graça qualquer. Tiveram um ataque de riso - como se dizia do riso incontrolável e já distante da causa - constrangido pelo olhar feroz e o tom grave daquele “Parem com isso! Cadê a graça? Não é hora de algazarra!”. Recordava com certo desgosto aquele brado que os calou na expressão da alegria vivaz. D. Agripina nada dizia: o pai também a tolhia. Não era simples acolhê-lo.

O menino transformou-se num rapaz imberbe, magrelo e longilíneo, que não angariava os olhares das moças e o respeito dos demais rapazes. Isso o incomodava um pouco, mas também pouco durou. Seu jeito solitário de andar a esmo e nadar horas a fio por puro prazer trouxeram-lhe benesses. O corpo se desenvolveu saudável, com uma musculatura rija. Cresceu com a disposição de experimentar outros esportes, embora o único de equipe a atraí-lo fosse o futebol.

Cesar era um bom atacante, havia geralmente uma bola na ponta do seu pé, quando jogava. Os colegas preferiam seu chute potente e certeiro nas finalizações e ele sempre estava a postos para receber a bola e dar a ela o destino predeterminado pelas regras e objetivo do jogo: terminava entre as balizas, de encontro à rede. Fora do campo ele era diferente, pouco ousava. Quem o queria por perto tinha que procurá-lo.

Tornou-se um homem que recordava e não questionava as idéias originais que, tampouco, debatia: acumulava-as. Nunca revertidas em ações, desdobradas pelas analogias, formavam um cabedal de bens adquiridos pelo estudo e experiência puramente intelectual. Singulares e reunidas, à disposição das lembranças, constituíam uma memória privilegiada.  As imagens táteis e visuais lá alocadas se manifestavam sem palavras ou atos: lembranças testemunhavam sua alegria, recordações eram os gestos mentais que indicavam as surpresas na vida, a sua reinterpretação da natureza. Apesar da ausência de procura de um sentido para a existência, a mente de Cesar suava.

Não buscava estar uno com a unidade das coisas: seu ser humano fazia parte do mundo com uma integração muito própria e descontínua, no que dizia respeito ao material e ao objetivo. Não era um homem prático e se afirmava na vida e na sensualidade através da imensa subjetividade e sensibilidade.

Licenciou-se em História, dava aulas na cidade e vivia na mesma casa. O avô morrera e o padrasto não ocupara o lugar de chefe da família. Cesar o fez. Ouviam-no agora, mas ainda nada comentavam. E ele não mais perguntava: afirmava. E pouco se comunicava. Tinha uma relação afetiva com uma mulher que morava em uma cidade próxima, mas não quis se casar com a viúva: os filhos pequenos... Duas casas: ambos preferiram assim. Visitavam-se. E passeavam, em silêncio.

 

* * *

 

Lúcio não gostava de usar o carro, mas a festa terminaria tarde e os ônibus eram raros nos domingos à noite. Táxis, então... Cesar insistiu para irem de carro: “a mãe não sai de casa. O senhor, ainda pesca.”

Acordou com o motor do carro. Não ouviu a chave na porta, esperou. E tocaram a campainha. Nunca mais esqueceu aquele som. Nem o do sino, no cemitério, na hora em que saía o enterro duplo.

Aposentado pela perícia médica, Cesar ainda caminhava sozinho, nadava na lagoa, chutava – agora na parede da casa -, lia, escrevia e tomava remédios.

Só escutava o som de Lips, os latidos do cachorro Nero e a voz que lhe falava coisas dentro de sua cabeça. Ela mandava que queimasse os documentos, mas Cesar não fazia: aprendera a reconhecer, na dor de cabeça, o anúncio da chegada desse companheiro invasivo. E escondia os documentos de si mesmo. Encontrava, quando passava o surto, textos que escrevia nesse estado. De nada lembrava (eram os únicos momentos em que sua memória se apagava). Lia-os avidamente, mas os textos eram quase banais, para sua imensa exigência de si mesmo. Eram anotações sobre a Roma dos Césares, os cristãos e o incêndio de Roma, Nero e sua mãe Agripina e tutor Lucio Sêneca. Pensava sobre a coincidência dos nomes, sobre a falta da lembrança desses momentos, chorava... Sofria.

Encontraram Cesar abraçado com Nero, ambos mortos.  “Estava um terrível sudoeste e a cortina esbarrou na lamparina, causando o incêndio enquanto dormiam. Morreram sufocados pela fumaça”, explicou o delegado em respeito ao colega da adolescência – queria preservá-lo de falatórios. Jamais contou que encontrou, entre os papéis queimados, a tradução da música Blowin' in the Wind de Bob Dylan e palavras soltas, escritas em letras garrafais: “Nero, Roma, Lips, silêncio, travessia, Luz, sopro, sentido, mente, vento, memória, arrastão”.

Em homenagem póstuma, o delegado - companheiro de jogos felizes de futebol - distribuiu no enterro a tradução que Cesar fizera da música, quando eram rapazes: 

 

Soprada no Vento

[Blowin' in the Wind]

 Bob Dylan

Tradução: Cesar Romano

 

Quantas estradas precisará um homem percorrer
Antes que possam chamá-lo de um homem?
Sim e quantos mares precisará uma
pomba branca sobrevoar
Antes que ela possa dormir na areia?
Sim e quantas vezes precisarão voar
as balas de canhão
Até serem para sempre abandonadas?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Quantos anos pode existir uma montanha
Antes que ela seja lavada pelo mar?
Sim e quantos anos podem as pessoas existir
Até que permitam sejam livres?
Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça
E fingir que ele simplesmente não vê?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Quantas vezes precisará um homem olhar para cima
Até poder ver o céu?
Sim e quantos ouvidos precisará um homem ter
Até que ele possa ouvir o povo chorar?
Sim e quantas mortes custarão até que ele saiba
Que gente demais já morreu?
A resposta meu amigo está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

 




[1] Na mitologia grega, Lips era um dos ´Ventos´, deuses responsáveis pelo vento. Lips era o vento sudoeste.
[2] Zéfiro (O), o vento oeste, suave e agradável; para os romanos Favonius
Nótus (S), o vento sul, quente e formador de nuvens; em Latim Auster







Imagem: Andrew Newell Wyeth 





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