A DANÇA DOS ARCOS - A NASCENTE
III - A NASCENTE
1.
Os negros cabelos de Alonso refletiam o ouro da lua. As estrelas, que vexadas do poder de Apolo, costumeiramente escondiam-se nas noites dos seus cânticos, contorciam-se de púrpura e prata por entre os pinheiros. O regaço, ao som do regato, escorria molemente no limo do riacho. A alma dos seres da mata ensurdecia em espasmódicos suspiros de esperança, regados no temor do desejo.
Alonso, no portal da Clareira, vestia primeiro o Bruxo. As sombras da floresta enrodilhavam-se em suas vestes, desvencilhando-se da terra nas frestas da fantasia. Orientavam o Mago mas não impediam o homem. Sem fornecer-se em obstáculos e ressentimentos, antes, ajoelhavam-se, pressurosas, pois era nítido que os olhos do Príncipe procuravam o céu.
Demorou-se o efebo. Por mais que o evita-se, oprimia-se dos resquícios da estima. Queria curar-se, mas, o esquálido corredor que o amparava na larva fornecia-lhe satisfação.
Nada, porém, se comparava à beleza que estendia a visão das longínquas árvores que resguardavam o leito da fada. Quando, enfim, as avistou, Alonso afastou com tranqüilidade os manejos do solo.
Aproximou-se, cercando o arco do bosque, divertindo-se com as nuanças dos filetes de cor que surpreendentemente pairavam em pastéis de rosas e azuis acima da noite cerrada. A silhueta dourada de Margri pousava adormecida na relva. Não estava profusa na aura, antes, integrada no invólucro físico, sem desmembramento de espaço, adornando toda a beleza da deusa, como no momento de sua concepção. Alonso deleitou-se e manteve-se a boa distancia. Queria respirá-la, sem veemência de palavras e movimentos, por toda a madrugada.
Pela primeira vez ,em sua vida de aventuras e floreios de conquistas, sentia-se menor, um espectador. Não se sabia tão menino, tão inválido no prumo da força, tão incoerente de façanhas e formas. Em nenhum momento imaginara que na visão da amada o mundo se alongasse para tão mais do que já fora. Era perturbador, cada passo de um homem era uma continuidade de entendimento. E Alonso recordou as lições dos mestres centenários, venturosos, transladados para os confins da complexidade bendita, para as magnitudes depuradas da luz. Percebeu a revelação e o transtorno do encontro.
Alonso chorou e embebeu-se no sal das lágrimas. Que elas rolassem ao chão como pérolas de marfim esmaltado e fossem aventurar-se em contornar o corpo da fada, não o surpreendeu. Estava na forma de uma mulher o seu cálice de líquido louro. Bebê-lo-ia sentado no trono da vida e ,para Margri, sim, para a sua deusa, queria estender o dia.
Era quase o princípio da chegada do astro maior. Alonso suspirou e as primeiras aves do dia dançaram-lhe alegre canto. Caminhou em direção a Margri que ainda adormecia. Queria que ela despertasse em seu palácio pois sabia que a moça, nos seus sonhos daquela madrugada, já o conhecera.
Era branca a manhã dos Eleitos.
Escusada de nuvens e de formas
anunciava-se
marítima e alada de sons.
Nos braços de seu Príncipe
principiou a Nascente
a dança do amor.
2.
- Meu mago de estrelas douradas, como se santifica a terra ao calor de teu perfume.
- Minha menina... o rio do desejo lava em minha alma a esfera escura que não sabia seu nome e que devolveu-se nua no primeiro canto da terra amada.
- Somos os servos e os reis e em todos os homens te amarei.
- Pois assim fomos condenados.
Às vezes olvidavam os deveres. Enamorados, quedavam-se por dias inteiros, as águas brancas e louras do riacho escorrendo em torno das pedras.
- Meu santo e seu dia de luz.
- Prevejo nos olhos das fadas a estrela prata que se fará firme condutora do exército.
- Quanto Sol envelhecia no poente...
- Resgatamo-lo em hora de amarelo e púrpura se curvar ante seus súditos...
- Tinhas um nome antes de mim ?
- Chamavam-me Alonso. Respondi-o por centenas de vezes, mas, só pude vê-lo quando, enfim, beijei em teu sexo a cor da terra lisa.
- Pois se és o deus de minhas fadas, aquele em que se depositam seus desejos no espelho de menina!
- E se és a mulher de minha força, aquela por quem tornei-me silencioso e firme ao dobrar o nó da espinha!
- Posso dizer que te amo, porém, o rio me segreda que se vai além do amor, para o recanto em que entôo a íntegra visão da poesia.
- E se em teu regaço deixei o homem e só me trouxe no deus, desembaraçado, enfim, de suas etapas metricamente conduzidas e assentadas.
- Tanta liberdade.
- Tanta ausência de questões.
Houve uma noite em que, enrodilhados no vento do campo, dançaram a marca e, olhando-se nos olhos, começaram a corrente.
- Se somos irmãos...
- Nos quis o senhor do centro diversos e únicos.
- Para que o devolvêssemos à terra, e a criássemos mais bela que as mãos do trabalho e da ventura.
- Em sua união...
- Irradia a luz de prata e...
- Tanta liberdade...
- Tanta ausência de questões...
- E o movimento...
3.
A lua fazia sua rota e sua incógnita. Da janela, Margri avistava Alonso, com seus cedros e sua adaga, belo como o deus da maré vazante. Ao contorno dos pinheiros chamou-o, atirando-se em seus braços.
- Alonso...
- Minha Margri...
A encosta dimensionava-se submissa, deixando-se levar, recriando-os em suas sendas. A noite já não vacilava sua perfídia, sonsa e saída das nuvens, que baixas, entornavam-se em torno da lua. Derramando vapor e vida eram horas ausentes da terra, virgens em suas vestes de esquecimento.
Os suspiros arfando-se na subida, que se seguia estreita e cada vez mais nítida, eram despidos de sons e desejos. Quase mornos em seus resíduos e mágoas, afastavam-se soluçando e não exigiam mais do que um beijo.
Avançaram, os enamorados, até o círculo claro – brumas e vapor – que ardia seus redemoinhos de pérolas e contas. Ali, vergou-se a deusa até o espaço do abandono e, do amado, não se moviam mais do que os dedos, hábeis em encontrá-la sem a espada.
No êxtase, Alonso irisou-a até o cume de limo e luz – as fontes ferventes levantando-se do leito do rio – e Margri, tomada do vernáculo da água, suspirou, em golfadas breves, os respingos da inconsciência.
A moça pode senti-lo afastando as suas saias, moreno da rocha limpo de questões. Expeliu, entre a luz e a dor, um amor sem palavras e, de tão distante, foi-se envolvendo em unicidade e tolerância, quase se remetendo ao inverso da NASCENTE.
Ainda teve tempo de buscar sua alma, nua e ouro, branca e transparente. Sem mais mistérios pode encaminhar-se para o fim, depositando-se ao começo.
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