O dia amanheceu frio e chuvoso, apesar de plena a primavera. Tomei o meu carro, segui pela estrada sinuosa, através da paisagem bucólica, o verde vivo a eclipsar a cor cinza do céu, cercavam-me os montes aqui e acolá, com a estrada a desvencilhar-se deles, em vã tentativa.
Um caminhão lento a minha frente carregava folhas secas como se estas fossem barras de ouro, leves como penas, a circunscreverem fluidos remoinhos no ar, espalhavam a bondade dessa riqueza aos mais pobres – provavelmente ele chegaria vazio ao seu destino. Imaginava que não houvesse nada tão triste quanto à faixa dupla, contínua, amarela: não ultrapasse!
Foi quando me apercebi de uma árvore a captar, inerte, a lúgubre paisagem. Encerrada ao silêncio de seu tronco, acenando lenços vivos de folhas verdes, intensas, sabe-se lá por que, através dos seus múltiplos ramos, quantos são os braços de Vishnu. E aquilo me deu um aperto no peito, que é como deve sentir o pobre escritor sem inspiração já há quase um mês.
Quando isso acontece, é comum achar que o mundo se parece mesmo com o branco e o preto dos jornais, numa sucessão das mesmas coisas, que as pessoas não vão mudar, que a poesia não tem sentido, que ninguém quer saber da luz dos vagalumes, ou do rastro de uma estrela cadente. Acredito: estão todos enganados. Posso provar isso enquanto sopro o dente-de-leão. Mas a minha certeza é efêmera, num segundo, ela desvanece.
Então me dei conta de que hoje é segunda-feira, que estou indo para o trabalho. Só pode ser isso, como naquela sucessão de caricaturas de um carinha com os dias da semana anotados embaixo; porque entendi que ela vai melhorando, à medida que os dias passam. E eu não posso ficar parado.
Há tanta coisa por fazer, para te dizer, dessas coisas urgentes, como uma nuvem, samba num boteco em dia de chuva ou quanto aos poderes afrodisíacos dos bigodes de um gato. Hoje percebi que precisarei ficar até mais tarde, que precisarei fazer serão do fim de semana. Dou um cavalo de pau na pista, a poeira sobe, os motoristas se assustam, metem a mão na buzina. Acho que quase os despertei.
Agora me lembro da noite de ontem: enquanto eu e você estávamos acordados, todos os outros dormiam.
estrada sinuosa
o coração
aquele verde insuportável
a cor amarela
a cor vermelha
montes aqui e acolá
barras de ouro leves como penas
remoinhos no ar
diamantes comestíveis
a bondade
pernas longas de um grilo
a riqueza
as guelras de um peixe
a inspiração
cartas de baralho
o destino
lenços vivos
folhas imensas
bolinhas de sabão
um poema sem sentido
vagalumes indicando o caminho
tronco de uma árvore
o longo rastro da estrela cadente
nuvem
uma certeza efêmera
dente-de-leão
os bigodes de um gato
a eterna dúvida
samba num boteco em dia de chuva
esticar o fim de semana
cavalo de pau na pista
muita poeira
e mão na buzina
o mar
o sol
uma paisagem bucólica
rede de descansar
um barco distante
vaga lembrança
o movimento dos braços de Vishnu
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