Tempo em branco
A
criadita mais a sua filha querem assassinar-me. Tenho a certeza de que esperam
ver-me cair morto. Em todas as refeições elas metem veneno no meu prato. Não
quero comer o que elas me dão. Se não me dão o que exijo, levo a refeição para
o quarto. Peço para me ligarem a televisão. Não sei como se faz. Espero que
saiam, fecho a porta e despejo tudo pela janela. Resisto. Só recebo alimento do
meu anjo, da minha Lucília. Das mãos dela recebo o amor e nas suas mãos mora a
honestidade e a confiança. Quando ela não vem, como sempre o mesmo, seja a que
refeição for. Recuso tudo o que elas me dão além disso. Insistem e insistem,
mas não me derrotam. Peço ao meu anjo que traga três latas de atum, três
batatas grandes e três garrafas de vinho, de 25cl, por cada dia em que ela não
está. Fico de pé a observar a destreza das mãos da criadita e da sua filha para
ter a certeza de que não me metem nada na comida. A água a ferver faz um
barulho nervoso e a lata a abrir provoca-me um calafrio. Será assim que abrem
os mortos?
Quase
interrompo o silêncio para perguntar que peça é aquela que abre a lata, ou a
outra que puxa a rolha da garrafa. Mas não encontro as palavras.
Não
me deixam cozinhar desde que a cozinha ardeu parcialmente. Dizem que me esqueci
de apagar o lume do fogão. Não acredito. Tenho a certeza de que foi a criadita
que deixou tudo arder só para trazer a sua filha.
Malditas
sejam. Querem que eu engula vários comprimidos, mas eu sou mais esperto do que
elas. Deixo-os ficar debaixo da língua, engulo a água e, quando se vão embora,
cuspo para a sanita a pasta multicolor que se formou na minha boca. Fico diante
do espelho a observar o meu rosto enrugado. Estico a língua e observo o padrão
escorregadio a descer até pingar para o lavatório.
Há
muitos tempos brancos, vazios, na minha cabeça. Tento preenchê-los, mas eles
reaparecem maiores e em sítios diferentes. Fico furioso porque sei que a culpa
é delas. Algum veneno desmancha o meu cérebro e provoca esta confusão. Perco a
paciência, mas tenho razão para isso. Elas roubam-me o que sei. O veneno come
devagarinho as minhas memórias. Tenho a minha estratégia, claro. Três é um
número sagrado. Três latas de atum, três batatas, três garrafas de vinho, três
maços de cigarros e três isqueiros na terceira gaveta. Três são os cigarros que
fumo de manhã e também três são os que fumo à tarde. São três os dias em que o
meu anjo branco não vem. Por muito que insistam, esta é a organização do
universo e não a conseguirão desmantelar. Se o tentam e percebo, então eu bato
com toda a força que tenho.
Percebo
que ela não vem quando a criadita tem de me dar banho. Acho que foi ontem, ou
noutro dia, que ela despiu-me, tirou-me a fralda e sentou-me dentro da
banheira. Não estou habituado aos seus movimentos. Meteu as mãos entre as
minhas pernas e eu dei-lhe uma bofetada. Caiu desamparada no chão e com sangue
na boca. O choro incomodava-me e mandei-a calar. Só Lucília pode mexer aqui e a
criadita sabe disso. A filha veio ajudá-la. Ficaram as duas no chão, a chorar,
enquanto eu arrefecia na pouca água dentro da banheira. “Mas ninguém me ajuda?”
Elas
olharam para mim e lembro-me de a criadita dizer “Estupor! Eu sou a tua mulher!» e apontou para a aliança. Eu também
tinha uma aliança no meu dedo. A partir desse momento nada mais conseguiu
surpreender-me. Como é possível as pessoas tentarem enganar um velho como eu?
Não há moral neste mundo?
Fiz
alguma força para conseguir tirar o anel. Assim que saiu, meti-o na boca e engoli-o.
“Tu
não és minha mulher”
A
filha ajudou-a a levantar-se.
“Vou
casar-me com a Lucília”
Elas
saíram e deixaram-me sentado ao frio. Fiquei zangado por me terem sujado o chão
com sangue. A filha veio, limpou-o e enrolou-me numa toalha. Tive de gritar com
ela. Queria derramar sobre ela todas as ofensas que conhecia, mas estranhamente
não saiu nenhuma palavra da minha boca. Grunhi e tentei mordê-la. Ela não
fugiu, só chorava e chorava até conseguir vestir-me e pôr-me na cama. Fiquei
algum tempo sozinho. Despi as calças com alguma dificuldade, arranquei a fralda
suja e atirei-a pela janela.
Não
as vi a fazer a comida. Deitei tudo fora. Não comi durante algum tempo.
A
campainha tocou uma, duas, três vezes. O homem dos correios toca uma vez e o
zumbido é longo e único. A Lucília toca três vezes... ou serão quatro… não…três
é o número do universo.
Não
me fala desde que soube da bofetada. Só depois de conversar com a criadita é
que veio ter comigo, limpou-me, despiu-me o pijama e vestiu-me. Já passaram
alguns dias e ela ainda não me fala. Quero estar sozinho, no meu quarto,
agarrado à almofada. Apaguei a luz, baixei os estores, encolhi-me na cama e
aqui estou, no escuro, com a boca cheia de silêncio e o corpo sem alimento nem
fome. Recuso a comida, a água e o banho. O quarto cheira a merda e a urina. Não
deixo que me mudem a fralda.
Ela
não podia continuar calada. Fico ansioso por ouvi-la abrir a porta, puxar os
estores, devagar, até pequenas linhas rasgarem a penumbra.
«Fez uma grande
asneira»
«Não
quero saber»
«Aquilo não se faz a
ninguém, muito menos à sua esposa»
«Ela
não é minha esposa! Não a conheço. Eu vou casar-me contigo»
«Engoliu a sua aliança?
Recupero-a na próxima fralda»
A
minha cara está muito quente. Devo estar corado. A aliança não me interessa.
«Lucília, conta-me a história daquela família, por favor»
«Quer que a conte,
novamente?»
Os
olhos dela são tão bonitos…
«Deixa dar-lhe banho?
Não quero que aquilo aconteça outra vez.»
«Sim,
claro». O banho é um momento de jovialidade. Quando ela passa as mãos por mim,
sinto-me novo.
«Pelo
que vejo, está mais “animado”.»
Eu gosto da vida a crescer no meu corpo.
«Nunca
lhe faria isso»
«O quê?»
«Magoá-la.»
Concentra-se
em lavar o meu corpo.
«Conta-me
uma história»
«Sim…eu conto-lhe uma história antiga que, provavelmente, já se esqueceu. Vai gostar»
Há
uma mancha branca que destrói o tempo. Acordei sozinho e limpo. Espero pela luz
da manhã. Sei pedaços de uma história que talvez seja a minha, talvez seja a da menina
que me afaga o cabelo todas as manhãs, talvez seja a da senhora que me traz a
comida ao quarto. Uma história bonita que se apaga.
Tenho
menos palavras e por isso sou cada menos… Não sei onde estou. Ouço um, dois,
três toques na campainha. Não sei quem é. Sinto a transpiração a escorregar
pelo meu rosto. O meu peito só acalma quando a menina me passa a mão pela cara
e me ajeita o cabelo. É muito bom…quero acordar muitas vezes para poder sentir as suas mãos no meu cabelo.
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