terça-feira, 1 de novembro de 2011

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OS DEVANEIOS DO HOMEM-MAU


 Pois parou no momento exato em que todos com seus corpos movediços seguiam, andava, moviam. Estancou. Exausto.
Morte? Pensou ele. Seria isso. Desistir do movimento. Observar o alheio ondular dos corpos outros-longe? Parado ficou. Olhos que pulsavam o coração que não eram. Olhos apenas. Grandes como o do lobo. Mas que não comiam nada, só a imagem da angústia que era. Que eram todos os movimentos circulares. Cansado de enganar o corpo em discursos evasivos. Ir? Para onde? Repetir a casa e o verbo da casa. E a imagem da casa. Fingir o inusitado, criar o impensável?
Existia. Sim. Existia a impossibilidade da volta. Do retorno. Não o mesmo. Os passos já não voltavam. O tempo modificava a estrutura das coisas. Pensava. No ato mesmo de sair, o voltar se tornara um impedimento. Não como antes. Se voltasse já não seria o mesmo. Seria outro. E esse outro não pertencia àquele espaço delimitado. Àquela estratificação. O caminho era outro, devia ser outro. Qualquer outro. Pensou na imagem da mulher distante e na indiferença. Na indiferença distante da mulher outra. Que era a dele. Podemos ser de alguém? Podemos pertencer na totalidade a alguém ou a alguma coisa? E já longe lhe levavam as pernas. Os pés. Os passos.
Não era fuga. Fugir é algo furtivo. Fugir é enganar, ludibriar. Seu discurso "do ir" já era algo amarelado. O uso cotidiano. Todos sabiam. Poucos acreditavam. Não era homem de se crer. Era o que ela pensava e dizia. "Fraco." Reclamava. A mulher. Seria realmente fraco? O que é ser fraco? O que é força? "Prefereria não..." pensava em Baterbly e na fórmula. Anular o mundo. Preferir não.
Mas ela exigia. Exigia o que não estava nele. Ela sabia. Sabia que o que queria. O que ela queria. Era outro. Não ele. Mas outro. Um outro-ele. Nas desavenças, as sentenças afirmativas o desconstruíam: " você é isso..., você é aquilo... " E tudo que era, para a mulher, era o que ela detestava. Sim. Era isso. Ele era - para ela - o fracasso, o desvio, o problema. Foi então que ela agrediu. O corpo. O rosto. De mão aberta e raiva. Cólera em palma furiosa, em rosto espantado. Os dela. Olhos em fogo-fúria. Ação? Reação? Era isso que ela esperava. Esperava força. Esperava também a cólera. Esperava a dor. O contato físico, a eletricidade do combate.
Ele não era físico. Não era carne. Já não mais. Corpo que se desfazia no desgosto da casa. Carne que apodrecia na dispensa. Foi então que a porta ofereceu-lhe a opção anunciada. O fora. O fora da casa. O fora do lar. O fora da mulher. No silêncio abandonar-se à rua. Desterritoriar-se. Desprender-se. Quebrar aquele eu constituído e pré-determinado. Apagar o texto. Apagar seu texto previsível. Riscar. Saltar do aquário.
São tantos os aquários que nos confinam...
Já era noite quando sentou em um banco. Praça escura. Talvez pretendesse um assalto. Ser assaltado, agredido. Sofrer e ter pena de si mesmo. Mas esse era o outro. O que deixara em casa. Sim, o homem do lar, o fraco, o merda... como era chamado por ela.
Não, não sentiria mais pena. Pode um homem perder a noção da compaixão?
Pode. Os jornais estavam cheios. Cheios de exemplos de homens impedidos de comiseração, homens sem misericórdia, sem dó. Homens-maus.
Sim. Seria um homem mau. O mundo gostava desse gênero. Isso. Experimentaria a maldade. Por que não? Bom e mau não são lados opostos da mesma coisa?
No filme o ator usava uma meia e moedas. Charles Bronson. Lembrava. Gostava muito dos filmes. Homem durão. Assustador. Não era Charles. Era Valdomiro. Não era Bronson, era Santos. Valdomiro Santos. Sorriu. Não queria ser santo. Demônio. Sim.
Tirou os sapatos. Tirou as meias. Os sapatos novamente nos pés. A pedra na meia. Pedra do tamanho do punho fechado. No bolso. Esperou.
Charles ia de encontro aos inimigos. Vingança. Sentimento forte que faz o homem transformar-se em besta. Ódio. Mas ele não tinha ódio. Tédio. Um grande e indefinível tédio. Já ia desistir quando aconteceu. Assaltos são previsíveis. Os lugares adequados, ambientes propícios, vítimas dentro do perfil. Eram dois e ele pensou que talvez não conseguisse. Estava suado. E com frio. Suado e com frio. Tremia? Uma com a arma o outro com o discurso. Um com a ameaça verbal, o outro com a física. Os insultos. A zombaria. Estão drogados. Os olhos delatam. São perigosos. O medo avisa.
"Minha mulher é uma vaca..."
"O quê..."
Medida evasiva, o inusitado, o giro violento da pedra. A mão arrebentada do homem. Os olhos assustados. Um grito. "filho da puta..." novamente a pedra, veloz e furiosa. Um rosto se racha, sangue, um tombo. O outro tenta alcançar o revolver no chão. Um chute. Na cara. Um nariz que já não é. Um corpo que treme. A pedra desce e desce e desce. O suor da morte. Êxtase. Loucura?
Examina os bolsos. O dinheiro. Os documentos. Um endereço. Á caneta.
Retira os sapatos de um deles. Tira as meias. Nos pés do morto coloca as meias ensanguentadas e furadas pela pedra. Coloca as meias do morto. Agora é um homem morto. Sente o frio da morte subir-lhe pelos pés.
O endereço. No táxi examina o papel. No bolso do casaco o peso confortável da arma. É um homem-mau.
A casa é grande e bonita. Luzes.  Pequena árvore na frente. Janelas grandes. Um velho sem cabelos abre a porta. Ele mostra o endereço no papel. Não sabe o que dizer.
"Ele está esperando."
E estava. Um homem pequeno, mas os outros dois eram grandes. "Achei que viriam os dois."
"Ele virá depois. Problemas..." Falava frases ouvidas em filmes e lidas em livros policiais. Mão não havia medo. Era um homem-mau.
"Ele disse que você é dos bons, que não tem escrúpulos."
"É."
"Você fará?"
"Detalhes, ele não disse muito."
O homem pequeno entregou-lhe uma fotografia. "Esse filho da puta, um tiro na cabeça e o negócio tá feito. Tem que parecer assalto, briga..."
"Motivo?"
"Ele disse que você não se importaria com motivos..."
"Me importo..."
Os olhos do pequeno piscavam nervosos. As mãos abriram uma carteira de cigarro, acendeu um. A fumaça subiu como um fantasma. Os olhos do homem da esquerda estavam fixos nele. Sobrancelhas grossas. Boca de não sorrir. Suava. Na testa. Estava nervoso. Um homem nervoso. O outro parecia estar longe. Desatento. Perdido em lembranças ou prazeres. Rosto lascivo. Tranquilidade.
"Fodeu minha mulher."
"Ah!"
"Vai fazer?"
"Não."
A interrogação desenhou-se nos três rostos. "Como assim?" "Não vai fazer?"
"Não."
O homem das sobrancelhas tentou aproximar-se. A bala abriu um buraco no peito. Morte.
O outro também reagiu. A bala riscou o pescoço, caiu, a outra entrou na barriga. Morte.
"Não sou quem você acredita que sou."
O pequeno estava atônito.
"Sou outro, nem lembro quem eu era, você lembra quem era?"
Sentou-se e fez o outro sentar-se. "A vida é uma merda, não é?"
Quando saiu da casa deixou quatro mortos.
Sentado no bar ainda lembrava a cara de apavorado do amante. Lágrimas nos olhos, a urina pela calças. Implorava que não o matasse. Que era pai de família, tinha filho. Foto do filho na carteira. Foto da mulher na carteira. Trazia a família na carteira. E sentava em cima dela todos os dias. Família fotografada. Família de papel. Bateu muito. Mas não matou. Estava cansado. E entediado. Muito entediado.
Pensou na mulher. Na casa e nos passos do retorno. Seria interessante? Possível? Queria isso? Não sabia. E isso era bom. Não sabia de mais nada.
Voltou para a casa. Bateu na mulher. Beijou a mulher. Transou e dormiu. No sono ouvia as sirenes dos carros da polícia estacionando em frente à casa.
Sorriu.
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Ronie Von Rosa Martins/professor e escritor

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