Pulseira Electrónica
Eu não seria mais feliz sem pulseira
electrónica. Afastei as pessoas, fechando-as do lado de fora.
Gosto da inércia. É com ela que me dou
bem e a ela sou militantemente fiel. A inércia permite poupar palavras,
economizar movimentos.
A minha liberdade existe fora do espaço
público.
Em casa, o murmúrio de um casal e o
guinchar, semanal, da cama no andar do lado atravessa a parede do meu quarto.
Quando o marido está no emprego, deito-me na minha cama e ouço a experiência
religiosa e tão maternal daquela esposa, tão devota, quando chama por Deus e
pela mãe em gritos anunciadores.
A minha janela é uma tela de cinema,
onde vejo a estéril comédia inquieta das pessoas. Dentro de casa, mantenho-me
exterior a tudo o que é mundano. Mas foi o que fiz lá fora que me permite estar
aqui dentro.
Naquele dia, algo se rasgou em mim. Tinha
acendido um cigarro enquanto olhava para a rua. A janela do apartamento dela
oferecia uma vista ampla. Estava muito transpirado e não vesti mais do que as
calças. Ela levantou-se, satisfeita, passou as mãos pelo meu peito e beijou-me
no pescoço. Um arrepio assaltou-me o sossego e escorregou pelo meu corpo.
«Não fumes aqui»
«E se eu abrir a janela?»
«Não sejas tonto. Está frio e sabes que
o cheiro fica dentro de casa»
«És castradora»
«Hum…», as mãos deslizaram pela minha
barriga, «não me parece faltar nenhum bocado»
Vesti-me enquanto ela estava na casa de
banho e saí com o cigarro na mão.
Há nos elevadores antigos uma
incompatibilidade entre a saída e a entrada. Entra-se por uma porta, dá-se meia
volta e sai-se por outra. Os elevadores modernos são mais económicos. Saímos
pela porta por onde entramos.
Carreguei no botão de chamada, carreguei
novamente, bati na porta do elevador, mas não havia qualquer intenção de o
mesmo subir. Resolvi descer as escadas e, sem esperar mais, acendi o cigarro
ainda dentro do prédio.
A grade, que tem de ser puxada depois de
a porta fechar, ainda deveria estar aberta. O elevador nunca subiria. Desci até
ao rés-do-chão e quando me preparava para fechar a grade, assustei-me com o
velho que estava lá dentro. De perfil para mim carregava insistentemente no
botão sem surtir qualquer efeito.
«Desculpe…»
Ele não ouviu e julguei ser impossível
não me ter visto.
«Desculpe…»
«DESCULPE», gritei e toquei-lhe no braço.
Virou-se muito devagar e encostou os
óculos ao rosto. Um tubo no nariz permitia que respirasse. O outro braço ficou
imóvel, sem vontade, ao longo do corpo. Reparei numa pequena bilha de oxigénio
que ele deveria transportar como se de um cachorro se tratasse.
«A GRADE ESTAVA ABERTA». E puxei-a com
força. A porta do elevador fechou-se. Fiquei a aguardar que subisse. O silêncio
permitia ouvir a pesada respiração. Esperei. Quando ia abrir a porta para ver o
que se passava, o elevador soluçou e subiu. O cigarro fora comido pelo lume até
ao filtro. Esmaguei-o num canto da parede, deitei-o no lixo e acendi outro.
Chovia. Não estava com vontade de me molhar por causa de um cigarro, mas não
queria deixar de o fumar. Subi dois lanços de escada e refugiei-me no escuro.
A ponta do cigarro iluminava-me o rosto
e a mão cada vez que o levava à boca. Ritualmente, nascia no escuro uma fugaz
auréola de luz. Depois, a penumbra escondia-me, outra vez. A porta da rua foi
aberta e bateu com estrondo quando se fechou. Espreitei e vi um homem de fato,
sem o rosto visível, e percebi que haveria problemas. Subi mais um ou dois
degraus, mantendo-me sentado. Ouvi alguns passos enquanto subiam as escadas…
«Cheira a tabaco»
…para depois deixarem de se ouvir. Reconheci
aquela voz. Era o marido. Se não fosse pelo cigarro, teria sido apanhado em
casa dela e na cama dele ainda a cheirar a sexo e ao corpo da sua mulher. O
cigarro salvou a minha integridade física.
Se cumprisse com as suas funções, eu não
seria obrigado a cumpri-las por ele. As relações abrem brechas, e é nelas que eu
entro. Todas têm os seus pontos fracos. Eu aproveito o melhor de todas, sem
obrigações, sem fidelidade, emprestando o corpo em troca de outro corpo. E fim.
Nada mais do que isso. As obrigações são para os maridos e não para mim. Quando
todos as cumprirem, eu sou aliviado desse trabalho.
Assim que ele entrasse no elevador, eu
sairia do prédio. Tinha deixado o telemóvel e carteira dentro casaco, ainda pendurado
numa cadeira da sala. Ser apanhado implica drama, gritos, ameaças e,
possivelmente, confronto físico. Dá muito trabalho. Não estava e não estou para
isso.
O elevador subiu e imediatamente desceu.
Escondi o cigarro para não espalhar muito cheiro. Não ouvia nada a não ser o
soluçar metálico do elevador. A porta foi aberta, a grade puxada, mas não o
ouvi a entrar. Esperei e concentrei-me em decifrar os sons. Duas pessoas. Os
sons eram distintos. Um guinchar de rodas, um cumprimento, um compasso de
espera, a grade a fechar e o elevador a subir.
Levantei-me e espiei o Hall de entrada
do prédio. O velho estava novamente no mesmo sítio. Parecia confuso, apoiado no
carrinho que transportava a bilha de oxigénio.
A bilha estava à sua frente e ele
apoiava as mãos no carrinho, tentando perceber o que havia acontecido. Olhou à
sua volta, encostou os óculos à cara, a sua mão tremia muito e a sua boca
continuava amordaçada pelo silêncio. A sua cabeça inclinou-se em desistência. A
mão direita desceu o rosto e parou sobre o nariz.
Ele não conseguiu sair no seu andar e
caminhar para sua casa. Mal tinha chegado, o elevador desceu sem ele perceber
que estava a voltar ao ponto de partida. A sua mão estava sobre o seu nariz,
sobre o tubo. Puxou e arrancou-o das narinas. A bilha estava no limiar da
primeira escada.
Fiquei inquieto. Teria de o socorrer,
mas isso implicaria ser detectado pelo marido.
O peito estava ansioso devido à falta de
ar.
Sentei-me, novamente, nas escadas.
Pensei em correr e sair antes de ele cair puxado pelo carrinho.
Fechou os olhos. As mãos apoiaram-se nas
pegas metálicas.
Apaguei o cigarro.
As rodas estavam quase a cair.
Levantei-me para correr.
Arrastou os pés para trás, meteu o tubo
no nariz, o peito acalmou.
Não conseguiu quebrar a forçada ligação
que o mantinha agarrado pela vida. Era um movimento que haveria de romper com
um estado lastimável para entrar num período de descanso. Ele procurava quebrar
a visceral inércia do corpo em tomar nas mãos a decisão de se soltar. O velho
estava preso em si mesmo.
Corri escada acima para perceber em que
andar morava. Um, dois, corri mais um pouco, três, continuei a subir, até
pararmos no andar imediatamente inferior àquele de onde eu tinha saído e o
marido entrado.
Escondi-me e esperei que o velho abrisse
a porta. Apareci rapidamente junto dele e agarrei-o pelo braço. O meu peito
arfava mais do que o dele. O que estava eu a fazer? O que é que pretendia com
aquilo? Entrámos e fechámos a porta. Do hall
consegui ver o quarto. Dirigimo-nos para lá. Ele largou o oxigénio. Fui eu quem
empurrou o carrinho. Deitei-o na cama com muito cuidado. Não queria que se
magoasse. Não ofereceu resistência.
Fiquei a olhar para ele, sem sentir o
tempo a passar e sem saber o que fazer. Sobre a sua mesa-de-cabeceira, estava
uma fotografia do casamento e outra do que presumi ser do seu filho. Pediu-as.
Eu coloquei-as sobre o seu peito. Fechou os olhos, arrancou o tubo do nariz e
agarrou as fotos com ambas as mãos. Eu teria de cumprir com a minha parte.
Tirei o tubo que passava por cima de ambas as orelhas, puxei-o e pousei-o sobre
a bilha de oxigénio. Toquei-lhe nas mãos, mas ele não abriu os olhos. Empurrei
o carrinho para a divisória mais distante do quarto. Voltei para ver o seu
corpo imóvel sobre a cama e saí de sua casa.
Ainda não tinha fechado a porta quando
ela apareceu com o meu casaco e o meu telemóvel nas mãos. Descera as escadas
empurrada pelo medo. Eu não disse nada. Ela não disse nada. Entrei no elevador,
já com o casado vestido e o telemóvel no bolso, mas ainda a vi entrar em casa
do velho. Caminhei para aqui, acendi outro cigarro e esperei que a polícia
aparecesse.
Eu gosto da polícia. Foram eles que me
ajudaram a estar aqui. Gosto dos juízes, também. Foram eles que me ofereceram
esta pulseira.
Chove. Adoro tempestades quando estou
em casa.
Mário Rufino
2 comentários
Gostei de ler, Mário.
Um conto interessante, cinematógráfico: a descrição pormenorizada nos mantêm atentos como se víssemos cena a cena até o final que, embora não surpreendente, nos deixa - por uns minutos - atônitos, imersos em reflexões.
Bjs
Muito obrigado, Sónia!
Agradeço a opinião!
Muitos beijos
M
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