quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

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NATALZINHO

NATALZINHO


Salvem-me do Natal!

Quero ser salva do Natal! Sobreviver a este Natal para poder ter o desprazer de assistir ainda a vários Natais!

Quero caminhar sossegada pelas ruas, com crise ou sem crise, quero respirar o ar acinzentado do Inverno e a breve brisa do rio, aperceber-me da sua língua húmida, metálica, água metálica, cortante de frio, maravilhosamente gelada; da vida atarefada desses pássaros brancos e dos peixes dos fundos e dos cais e dos barcos e das gruas. De madrugada, observo as altas gruas em movimentos de insónia, sem parar, para cá e para lá, para cima e para baixo.

Existem as gruas no Tejo como eu existo em Lisboa. Com Natal ou sem Natal. Indiferente.

Hoje desço a rua Augusta aos ziguezagues por entre tanta gente que tem um destino certo a cumprir: apanhar o barco para a Outra Banda. É uma terra que se chama Outra Banda que também tem um rio, mas não é um rio tão bonito como este que se vê de Lisboa. Falta-lhe o Cais das Colunas. Essas pessoas não dão pelo meu caminhar. Correm pela rua, apanham o barco que já chama, apanham os meninos sonolentos e cansados que esperam por eles todos os fins de tarde ali no infantário, ali na escola, ali na casa da avó, ali na pastelaria, ali na esquina da rua. E os meninos perguntam quando é que é Natal e escrevem cartas, escrevem notas de encomenda ao pai Natal, eu quero isto e mais isto e aquilo e mais aquilo e também isto, traz-me tudo ó pai Natal, tu que corres todos os dias do ano pela rua Augusta abaixo…

Existem as gruas no Tejo como eu existo em Lisboa. Com Natal ou sem Natal. Indiferente.

 Afinal, ali na Outra Banda também há um Natal, há Natal em todo o lado. Absorvente, impositivo, dominante, época de pouca liberdade, de beijinhos, de cumprimentos, de desejos variados, de bolos reis e de bolos rainhas, de luzes, cores, fitas brilhantes, bolas e bolos e mais bolas, cânticos delicodoces, das ruas iluminadas desde Outubro, de comerciantes ávidos, esfomeados de pessoas, de olhar exoftálmico como se de vampiros se tratasse – comprem, comprem, comprem! – e eu  passeando calmamente rua abaixo, de norte para sul, caminhando num piso escorregadio e,  ao mais leve toque de alguém, se não me equilibro caio, caio por qualquer buraco aberto no passeio ou mesmo numa sarjeta, caio num abismo sem luzes, como Alice caiu, e talvez tenha a sorte de sair livre, alada, cantante, nalgum sítio onde haja um verdadeiro Natal.

Existem as gruas no Tejo como eu existo em Lisboa. Com Natal ou sem Natal. Indiferente.

Que, para falar a verdade, nem eu nem ninguém sabe o que é um Verdadeiro Natal.

Imaginando aquilo que sabemos da tradição oral, dos desenhos dos livros e nada mais do que isso, imagino umas palhas, um bebé em cima das palhas, despido, amornado pelo bafo duma vaca e dum burro, observado atentamente por sua mãe e por seu putativo pai, visitado por ricos reis que viajaram sentados lá no alto das bossas dos camelos vindos de países longínquos carregados de oiro e pedras preciosas para tudo oferecer a este bebé sem frio, sem sono, sem roupa. Gosto muito deste bebé. Não gosto é do cenário: faltam ali umas broas castelares, falta ali vinho do Porto, falta ali qualquer coisa que não sei definir mas que me enregela o pensamento.

Existem as gruas no Tejo como eu existo em Lisboa. Com Natal ou sem Natal. Indiferente.

É por este menino que festejamos o Natal. Pelo seu nascimento pobre mas natural, sob um céu azul-escuro profundo pintalgado de miríades e miríades de estrelas minúsculas e brilhantes. Quantos meninos nascem assim nas noites frias de Inverno e que nós não conhecemos nem nunca conheceremos porque não faz mal, não tem importância, não interessa, é mais um…

Mais alguém nascerá que será homem, que será mulher, que vai crescer e conhecer-se, viver aqui, ali, longe, perto, na crua lonjura das cidades, na solidão da sombra duma árvore, na secura duma longa praia, na enigmática montanha; mais alguém a juntar-se a tantos milhões de milhões de alguéns; mais alguém a nascer na dor festiva, na dor alegre, na inquietação da cegueira dum possível amor; numa estrela longínqua; num sonho branco; alguém que pode vir a correr, a saltar por um campo de ervas rasas onde pastam ao sol alguns cavalos que lhe acenam um adeus de planície, que lhe acenam um adeus a deixar Belém, cavalos acenando adeus com as sua caudas amplas como plumas de vento. Um adeus de Natal.

 

Existem as gruas no Tejo como eu existo em Lisboa. Com Natal ou sem Natal. 

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