terça-feira, 31 de janeiro de 2012

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Num flash



Estava além de qualquer horário. Era intrigante. O relógio já não mais lhe apontava ameaçador, seus ponteiros pontiagudos. Livre. Livre?
Já não sabia. Não entendia qualquer liberdade. E enquanto a mulher retirava o corpo da cama e se preparava para trabalhar. Fingia dormir. Era um grande fingidor. Até felicidade fingia. Sorrisos, amenidades, afagos... era bom em fingir. Do outro lado do quarto ouvia o movimento da filha. Escola. Barulho na cozinha, banheiro. Vida. E ele fingia. Cerrava os olhos. Não pretendia ver. Não mais. Ou não era visto?
Mecanicamente recebia o beijo da esposa que saia. Certa vez, para teste, acomodou-se sob as cobertas a fim de esconder o rosto. Ela beijou o travesseiro. Nem sentiu. Mecânico. Mecânica. E saiu. Como sempre saia.
A filha gritava “até!” e ganhava as aragens da juventude. Ele fingia.
Aposentado. Aposentado da vida. O corpo teimava em ficar definhando na cama. Morrer dormindo... Tranqüilo. Era o que queria? Era?
Levantar. O corpo em movimento até o banheiro, o espelho o rosto. Quem?
Um mesmo rosto de sempre e de todos o observava sem emoção. Até com indiferença. Inchado pelo não-dormir-fingir.
De cuecas a TV. O sofá. Jogar o corpo novamente. Catástrofes. Mortes. Corrupção e sacanagem. Muita sacanagem em todas as esferas. O dedo erguido em afirmativa conclusão. Click. O silêncio da casa.
Terrível o silêncio da casa. A falta de fome, o sem-sentido da fome.
Então o banho. Escorrer. Diluir o corpo. Fluir pelo ralo. Desmanchar-se. Sabão para desinfetar a alma. Espuma para... para que a espuma? Água!

Na rua já não é mais “ele”. É todos os outros. Iguais. Rostos todos. Perde-se neste não-ser-quem-é infinito.
Todos são ele. Indiferentes. Mesma cara plantada, mesma cara lavada, mesmo desamor, desassossego, desilusão.
O jornal. Pelo caminhar até a banca. Pelo mover o corpo. Pelo pagar o papel. Pelo contato com o “Seu” Felipe da Esquina, o vendedor de mentiras. Era o próprio Felipe que se auto-intitulava. “Compre aqui, minhas mentiras são melhores que as dos outros...” e balançava a enorme pança numa gargalhada tão bem treinada que parecia até natural. Devia ser um outro fingidor, todos não eram?
Uma piada desprovida de qualquer humor, um comentário fatalista qualquer, um até logo. Pressionado sob o braço, levava o jornal até um banco já pré-determinado da praça. Sentava. Olhava para os lados. Ninguém. Nunca havia ninguém. E mesmo que houvesse seria ninguém. Cruzava as pernas, respirava fundo e passava os olhos naquele mundo de letras. Tédio. Um grande tédio. E então fazia o que fazia sempre. Página por página. Arrancava como pétala de rosa e largava ao vento. Certa vez um guarda o interpelou. “Por que isso?” Sorriu e ofereceu os pulsos juntos. Cadeia? O guarda olhou para aquele rosto velho e cansado, sorriu, balançou a cabeça, apanhou o jornal espalhado, jogou no lixo e afastou-se meneando a cabeça. “Esses velhos...”
Ele ouviu, pensou em mandar o guarda à “puta que o pariu”, mas estava entediado demais.
A filha ficava os dois turnos na escola, a mulher só voltava a noite. Comia o que havia deixado pronto do outro dia ou ( freqüentemente)  fazia um lanche antes de chegar. Banho. Cama e sono. Fim.
Então era assim. Beliscava o dia todo. Não pelo prazer. Mas para não ter que sentar num restaurante ou lancheria. Odiava sentar para comer nesses lugares. Comprava um “Queque”, odiava “bolo inglês” e um refrigerante. Sentava no mesmo banco da praça e cumpria mais essa função. Se sentisse mais fome. Atravessava a praça e na padaria “Bom Pastel” comia um pastel de queijo. “Vai bem seu Floriano?”
Era esse o momento em que ouvia o seu nome pelo dia. Única vez. Às vezes ia à padaria só para ouvir o próprio nome. Estava desaparecendo. Sabia. Queria dizer isso para alguém. Mas ninguém queria ouvir. Sabia que estava desaparecendo. Seu nome valia um pastel de queijo. Só.
Sentia que o seu “sumimento” estava relacionado com todos os outros. Iguais. Mesmos. Já não fazia diferença. Eram os mesmos.
A mulher já não o distinguia do travesseiro. Para  filha era um “Até...”.
Do outro lado da rua. Na frente da padaria, na praça. Lá estava ele, sendo outro. Outro que era ele. Velho. Sentado. Olhos perdidos. Corpo perdido no sem-horário-dever-viver. Outro. Outro-eu. Pensou. E muitos estavam. Iam e vinham.
Na praça o fotógrafo de crianças esperava. Antigo. Antiquado. Na era “das informáticas”, teimava em “tirar” fotos com uma máquina vetusta e um cavalinho de pau. “Senta aqui meu filho...” e o menino chutava o brinquedo e  negava-se ao ridículo. A mãe pedia desculpas e “arrastava” a criança e o fotógrafo perdia o dinheiro.
“Uma foto?” perguntava surpreso.
Ele sentou em um banco de madeira oferecido pelo profissional. Pensava que uma foto ia redefini-lo. Identificá-lo novamente. Não estava preparado para a desorganização do corpo, para des-identificação.
“Sorria...” Ele não sorriu. Um flash.  Desapareceu.
Por alguns instantes o fotógrafo ficou em silêncio. Olhou para o banco vazio. Para o nada. Pensou...
Sentou novamente e esperou um outro freguês.


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