sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

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OLHAI - Milena Martins

OLHAI
(Do esquecimento e seus desdobramentos – parte 3)
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I.
Entaipado.
Com essa palavra decido começar a narração da falta de acontecimentos desse lugar onde devo estar parado na mesma posição desde o início de tudo. E por tudo entenda-se o antes, esse que talvez.
Sim. Começo entaipado.
E só. Nesse quarto enorme, sentado nesse sofá enorme que minha pele é incapaz de sentir. Na parede ao lado, a madeira da mesa velha encostada ao emboço descascado e verde.
Não, não, o emboço é branco, a parede é branca. O verde está em tudo o que vejo e devem ser meus olhos esverdeados com uma auréola amarela em volta da íris me pregando peças, devem ser. A madeira da mesa é um misto de verde com marrom. Não há cadeiras, não vejo portas nem ninguém. A luz é uma garganta verde. Estou sentado aqui há muitos anos e acabei de chegar. Estou sentado aqui há muitos, muito anos.
E não conheço esse lugar.
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II.
Lembro uma meia-noite e eu sentado no quintal, fumando um cigarro no escuro e embalado pelo ronco do vizinho da casa de trás. Ia começar a chover. Eu sempre gostei muito da chuva.
Devo avisar que isso talvez seja apenas uma invenção. Talvez ou certamente, sendo mais provável a segunda hipótese. Se bem me lembro, não me lembro de nada, e a vida é uma junção de lembranças, o que é frustrante, porque não se pode dar replay no tempo, não se pode resetar o save game. Dá no máximo pra pegar todos os continues até a hora derradeira do fatality.
E assim sendo, talvez eu deva começar a procurar as esmeraldas dessa fase especial.
Fecho os olhos com força pra que eles se abram do outro lado. Raios verdes na noite das pálpebras. Quase cheguei a ver a luz. Acho que cheguei a sentir o calor de um braço sobre meu ventre, uma respiração no meu pescoço. Acho, não lembro.
Até porque, se bem me lembro, não me lembro. O que significa que, se vida é lembrança, isso que eu não tenho, consequentemente não tenho vida. E é preciso viver pra lembrar.
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III.
Em suma, o que é a ausência de vida senão liberdade de inventar-se. Invento, por exemplo, que odeio interrogação e por isso me neguei a terminar a frase anterior com uma. Invento também que adoro a palavra entaipado. A palavra tautologia. A palavra fronha. E pra tudo isso, invento um motivo assim.
Abri aquele livro pela primeira vez aos nove anos e dois meses de idade. Fechei aquele livro pela primeira vez aos nove anos, dois meses e três minutos de idade. Não consegui ler porque estava com sono, não consegui dormir porque estava lendo. Talvez se ele tivesse se insistido aberto naquele tempo ingênuo, essa palavra não cortasse hoje tanto. Entaipado.
Enigmas Tostines me divertem. Me diverte pensar que estou preso porque gosto da palavra entaipado ou que gosto da palavra entaipado porque estou preso. Me diverte também pensar que estou sentado porque não estou em pé ou que não estou em pé porque estou sentado. Afinal, preciso arrumar algo pra me distrair sentado aqui sem me mexer desde. E então isso me diverte por que quero ou quero isso por que me diverte.
(Não espere uma interrogação, já inventei que não gosto delas.)
Mas o auge da diversão é pensar: sou eu por que não sou outros ou os outros são outros por que não me são. O branco é branco por que não é verde. Meus olhos são verdes com uma auréola amarela em volta da íris por que não são pretos com a íris se mesclando ao escuro.
Estou nesse quarto por que não estou em outro lugar ou não estou em outro lugar por que estou nesse quarto.
Separo os porquês por que não gosto de interrogações ou não gosto de interrogações por que quero separar os porquês.
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IV.
Continuo tentando acordar o antes. Vou continuar, é preciso. Deve haver algo nele. Deve. E não consigo me impedir de pensar: quero lembrar por que há algo ou acredito haver algo por que quero lembrar. Fecho e abro os olhos. Fecho e mantenho. Abro, fecho e mantenho de novo.
E tudo é verde. Quando tento abrir os olhos, raios verdes. Se eu sacudisse a cabeça talvez voltasse um branco, mas não sacudi, e de olhos fechados tudo foi pálpebra. O resto todo é incerteza. Raios verdes frente aos meus olhos fechados, tentando se abrir do outro lado, esse que talvez seja verdade. E tenha cor.
Mas nem o sonho existe.
Tudo é verdemais.
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V.
Toco o braço desse sofá. Não sinto o braço desse sofá. Não sinto meus dedos se entrelaçarem quando entrelaço os dedos. Nem minhas mãos sinto tocarem meu rosto quando ao rosto as levo. Só notei o rato em meu colo quando olhei que havia um rato em meu colo. Antes de jogá-lo longe, tentei sentir seus dentes cravados em minha pele. Não senti seu pelo em minhas mãos enquanto o arremessavam com raiva contra a janela. Não senti escorrer o sangue da ferida aberta em meu joelho. Nem sentirei o cheiro de seu cadáver em decomposição.
Sou todo visão.
E o quarto é um imenso cubo verde com grandes janelas na parede à minha frente. Do outro lado do vidro, há outro vidro e do outro lado do outro vidro deve haver mais alguém.
Sei, ou imagino que sei, porque, depois do vidro depois do meu vidro, o ar parece pulsar. Haverá um dia em que alguma forma se mostrará pra mim, seu pulsar movendo o sangue pelas veias e o ar pelos pulmões. Movendo os olhos que se fecham e abrem, se fecham e se mantêm fechados, se abrem, se fecham e se mantêm fechados de novo, tentando se abrir do outro lado. Como os meus.
O mundo vai acabar num piscar de olhos.
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VI.
Ele chegou. Eu não o conheço, mas ele me conhece, e me trata bem. Ele mora aqui comigo. É ele quem joga as sobras no chão.
São muitas as sobras.
Uma barata está há três dias circundando incansavelmente a embalagem de sorvete abandonada na quina entre as paredes. Há embalagens velhas de comida jogadas embaixo da janela, há muita sujeira no chão. É ele quem chega da rua trazendo o lixo, ele, aquele que mora aqui comigo e que, descobri sem que nada me fosse necessário ser dito, chama-se Maurício e toca violão. Ele entra pela porta que não vejo, ouço seus passos chegando e, antes deles, a porta se abrindo e, antes dela, a chave rodando no tambor da fechadura e, antes disso, o baque seco da chegada do elevador. Ele aparece depois de cumprir metódico esse sempre mesmo ritual. E espalha as sobras pra alimentar os demônios.
Tudo deve estar podre e cheirar a sujeira e morte, eu vejo. Mas não consigo sentir.
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VII.
Houve um tempo, do outro lado do verde, em que eu tinha uma casa com quintal e folhas de louro nascendo no canteiro, um carro velho e uma voz. Grave. E houve um tempo, do lado de fora da bruma, em que meus lábios desencontrados eram um som grave saído de todos os rádios em redor do planeta.
Eu fui cantor. Do outro lado, quando ainda cor havia. Eu tinha uma voz grave e um rosto bonito, sombreado de azul. Os flashes eram brilhantes de amarelo. Os gritos eram vermelhos de batom. Meu nome era preto de tinta pintada sobre camisetas e fotografias. Meu hálito era verde de mentol, meu corpo era dourado de bronze, meus olhos verdes com uma auréola amarela em volta da íris não viam raios verdes no escuro das pálpebras.
Eu levantava, andava e sentia. E conseguia dormir. Com um braço sobre o meu ventre e um sopro quente no meu pescoço.
Não havia sobras.
Eu acho que isso tudo é lembrança, mas não me lembro.
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VIII.
Lucio, ele me disse. Não se lembra de mim, perguntou. Eu ia responder nem de mim, Maurício, nem de mim. Mas não tenho voz.
Maurício não está em casa agora. Do outro lado do outro vidro, vejo um vulto se aproximar. Eu sentiria medo, se eu lembrasse como.
Se eu lembrasse como é lembrar.
Fecho e abro os olhos. Às vezes me sobre um nojo pela garganta, uma vontade enorme de socar a parede branca banhada de verde e a mesa velha a ela encostada. É esse ódio enorme que tenho sentido com frequência. Porque meu corpo não me obedece mais, não se levanta, não sente, não fala. E não se lembra de nada além disso: entaipado.
Não há trovões como na cena do livro, Érico Veríssimo, capa verde e lilás. Não há trovões, apenas os raios verdes sempre que tento manter fechados os olhos pra que se abram do outro lado.
Genoca não gostava de tempestades. De uma certa forma, sinto pena dele, porque a chuva sempre me embalou pra dormir, eu acho, o que acho que era bom. Ele nunca vai sentir o conforto de saber que a natureza inteira está cantando seu acalanto.
Se eu conseguisse, riria dele agora. Ou lhe diria assim: Genoca, eu sou diferente de você quando entaipado.
Porque foi ele quem me disse isso pela primeira vez. Eu tinha catorze anos quando aquele livro se manteve aberto frente aos meus olhos verdes. Minhas mãos podiam ainda sentir a textura áspera do papel velho. E então li essa palavra pela primeira vez. E acho que foi importante ou marcante ou impactante ler essa palavra pela primeira vez. Entaipado.
Desde o início de tudo, é só dessa palavra que consigo me lembrar.
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IX.
Pela primeira vez, consegui ver uma cortina verde se balançando com o vento. Cheguei a sentir o vento. E a quentura de um corpo colado ao meu, seu braço sobre meu ventre. Estou deitado. Há dedos nos meus cabelos. As paredes são o branco encardido de uma pintura velha e há grades de ferro na janela. Fora dos vidros jateados, a silhueta de uma árvore com flores amarelas, telhados vermelhos e um prédio distante na minha vizinhança penumbrosa amanhecendo. Quis ficar no abraço daquele corpo quente respirando quente na curva do meu pescoço. Quis, quis muito.
Não tenho querer.
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X.
Maurício nunca está em casa quando o vulto se desenha na janela em frente. Hoje quase vi um rosto. Em vez disso, vi um terno. Amanhã talvez eu veja a gravata. Ou o colete. Ou a cartola. Meu maior passatempo é ter esperança de que o que já se mostrou não desvaneça quando se tornar nítido o que por ora é ainda um borrão desfocado. E pulsante.
Quando houver alguém do outro lado do vidro da janela que está do outro lado do vidro da janela desse cubo verde onde me sento sem saída, vou abrir meus lábios mais uma vez. Juntarei toda a minha força na garganta e sei que minha voz grave sairá novamente.
Pra onde é a saída, eu vou perguntar. Como é que eu me levanto daqui.
Alguém vai me apontar a direção da chave, eu sei. Sobre a mesa de madeira velha ou no meio das sobras. Sentirei o mau cheiro do lixo e dos animais mortos que vinham comer o lixo. Sentirei muita dor sobre o joelho e ficarei muito feliz.
Girarei a chave no tambor, a mão na maçaneta. Meus passos vão ecoar pelo corredor e apertarei o botão.
Se o elevador demorar demais, desço de escada.

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