quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

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Outubro ,1944

A velha senhora contemplava o interior da caixa de correspondencia. O envelope pardo continuava alí,como um espinho no pé ou um lunático familiar, que necessitasse ser escondido do mundo; não, era o mundo que a procurava, enfiado pela abertura da caixa, numa incômoda posição de ponta - cabeça, há dois dias. Nunca a sua paz fora abalada por coisas tão distantes , tão remotas .Se aquele homenzinho de bigode ridículo queria tomar conta da França , que tomasse . Quem pariu mateus que o embale. Ninguém morria por deixar de usar  perfume francês . Mas aquele envelope incomodava demais ,não dava mais para fazer que não via, gritava de dentro da caixa de correspondência que o tirassem dalí e fizessem o que achavam que deveria ser feito. Tomou da chave amarrada na fita, abriu a caixa, pegou o envelope e algumas revistas já envelhecidas de semanas , assinadas pelo filho . O envelope começou a queimar-lhe as mãos; a cada olhar para o sêlo das Armas Federais , uma fisgada no peito, um travo na alma. Colocou o envelope sobre a antiga e opaca mesa de cedro , puxou a pesada cadeira com dificuldade e sentou-se, á contemplar aquela parda interrogação, empacotada e a ela endereçada. Colocou os óculos, passou a mão na perna direita - seu tique de estimação- começou a abrir aquele envelope ,   tão cheio de carimbos, de repente tão esmiuçadores, que faziam a vida parecer devassada como uma casa em demolição, tantos termos bonitos , alguns que nunca lera antes, mas a nação brasileira , na pessoa do seu Presidente da República ,tinha o pesar de comunicar-lhe a heróica morte do seu filho na Itália , defendendo a liberdade mundial da ameaça das potencias das trevas , o Eixo e seus componentes malignos. Uma assinatura arrevezada sobre o   nome de Getúlio Dornelles Vargas, no final. Ergueu-se lentamente da cadeira,tirou os óculos, olhou o xale pendente do cabide, bandeira multicor de um exército em derrota permanente . Foi até a janela, debruçou -se , contemplou longamente a paz azulada das serras tão distantes e descobriu que desaprendera a chorar.

1 Comentário

Jorge Xerxes

André,

Um Ótimo Texto!

Que Bom Encontrá-Lo Também Por Aqui.

Um Grande Abraço! Jorge