domingo, 29 de janeiro de 2012

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Último Pedido

Primeiro levaram-me o coração. Não dei muita importância ao fato: ele já estava demasiadamente despedaçado e doente. Mas não ficou por aí. Penduraram-me pelas mãos numa grande árvore em praça pública. Temi que rissem da minha situação, preso ali e nu, sem coração. Mas ninguém reparou. Somente no final da tarde é que o primeiro homem apareceu. Mediu-me de cima a baixo. Em seguida, apalpou-me as nádegas. Ofereci-lhe uma das coxas, mas ele recusou. Por fim, atacou-me na barriga, arrancando-me o estômago a dentadas. Afastou-se levando a carne sangrenta e escura pendendo de um lado da boca, como um cão. Anoiteceu e eu dormi. Não sonhei. Despertei com um garoto aos meus pés. Estava faminto. Ofereci-lhe a perna esquerda. Ele ficou irritado e levou apenas o dedão do outro pé. Primeira e última vez, deixei escorrer uma lágrima. Queimou-me o rosto. Ao meio-dia apareceram duas mulheres. Observaram-me com muito cuidado, apalpando minhas pernas e braços com visível prazer. Ofereci-os generosamente. Uma delas tirou então da bolsa uma pequena faca enferrujada e cortou-me o sexo, dividindo-o logo em seguida com a companheira. Afastaram-se felizes e eu forcei um sorriso. Algum tempo depois chegaram os homens da fábrica. Hora do almoço, era isso. — O que desejam, senhores? — perguntei. Permaneceram em silêncio, os olhos vasculhando o meu corpo. — A perna esquerda ainda está inteira e saudável. Também as coxas. E restam-me ainda os rins e o fígado. Sinto muito é pelo coração. Ele foi o primeiro — terminei. Dois deles se aproximaram e me viraram de costas. Arrancaram com as mãos, sem piedade, minhas nádegas. Tudo escureceu. Desmaiei. Acordei algum tempo depois com o som do meu próprio grito. Um padre se aproximou. — Em que posso ajudá-lo, meu filho? — Gostaria de fazer um último pedido — falei. — Estou morrendo. — Que Deus se apiede de sua alma. Qual é o seu pedido? — Leve-me esta coxa, esta última coxa. Tudo o mais já está se decompondo. O padre abriu sua Bíblia e murmurou algo — uma prece, pensei. Logo em seguida, porém, decepou-me violentamente uma das orelhas com o seu crucifixo de prata. — FILHOS DA PUTA! — gritei enfurecido. — Vocês nunca serão capazes de atender a um pedido meu? O padre se afastou levando consigo a minha orelha e limpando na batina o crucifixo cheio de sangue. Desejei matá-lo naquele instante, mas também isso me seria negado.

2 comentários

andre albuquerque

Excelente,um Prometeu ás avessas, bela metáfora da condição condição humana .

Jorge Xerxes

Parreira,

Um Excelente Texto!

Meus Parabéns e Um Grande Abraço,

Jorge