domingo, 5 de fevereiro de 2012

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Rua das Pretas

Ao início da tarde desliguei o telemóvel para respirar melodia com um programa refinado e intemporal: Novembro é uma árvore frondosa para usufruir a área musical, não me perguntem porquê. Mergulho em Jessye Norman, John Cage, Dvorák, Vicente Celestino Heckel Tavares, Hans Joachim Koellreutter. No silêncio diurno, a luz fraca, encontrei-me envolto nas trevas do exílio onde o medo impera e embalo a própria dor. Senti deslizar por baixo das minhas pernas a única presença possível, o fantasma de uma casa onde chove sem parar há tantos anos. Era o Elliot com a sua linda cauda, a sua ternura enigmática, transportando o seu íntimo pudor e a sua linhagem mística de felino, e não pude expulsar o arrepio de estar tão só acompanhado por um velho gato e com sonhos que não conto a ninguém.

Quando bateram as oito na igreja, havia uma estrela no céu, realidades deslumbrantes da noite, um barco projectou um adeus solitário, senti na garganta o estrangular de todos os amores que podiam ter permanecido e não sobreviveram e tremi ao sentir como eu era inocente. Não aguentei. Agarrei no telemóvel com o coração a estremecer até à raiz do braço, marquei o número muito lentamente. Olá, disse-lhe com a voz trémula: Desculpa-me, uma vez mais. Ela, serena, voz doce, sem disfarce: Não se preocupe, estava à espera do seu telefonema. Avisei-a: Quero que esperes vestida e que assim fiques enquanto estivermos juntos. Ela deu uma gargalhada espontânea mas na sua voz dançava um desafio. Como quiser, disse, mas meu corpo arderá para si no lusco-fusco, como todos os homens gostam. Eu sei, disse-lhe: Eu desejo apenas uma mulher com quem beber e morrer, segurando a minha mão, e nisso demorar os frágeis instantes a que um cliente tem direito.
- Com certeza – disse –, então não demore, não se perca pelas ruas frias.

Luís Galego


 (escrito a 21/09/2009)

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