1.
nada se escuta, senão
o silenciar da dúvida
e sua consolidação,
que castiga
não tanto o fado,
cantiga dos ventos
que já não pulsam,
quanto a decadência
dos tempos.
sonia regina
2.
nada se escuta
senão a cicuta
que amortalha a pele
e os ossos,
nada se vibra
senão a foz e o verso
que rouba dos pés
o lírio vermelho
do dia.
jorge vicente
3.
nada vibra aquém, na noite
ouve-se o chamamento
do brilho
na chama em que me perco
arde, no verso, o gosto
de mais um beijo
sonia regina
4.
há um paladar e um gosto a alecrim
nas palavras que escreves: ou serão
as palavras vestidas de todas as
plantas, como se a selva marulhasse
e enchesse a poesia dos sons, dos
toques, do mistério do saci e do
boto.
temo que iemanjá não me perdoe
e cante uma canção em minha morte.
jorge vicente
5.
busca força nos sabores e cheiros
da natureza, procura o sublime
e o experimenta nas palavras,
as imagens em movimento
é assim, meu senhor, é assim:
levanta-te e anda
busca o que dê sentido
à existência do poema,
crucificada pelo hermetismo
sonia regina
6.
ainda ontem vi hermes segurando no caudal
de uma estrela. ou terá sido apenas a figura
de um livro, aqueles que lemos e ouvimos
quando crianças somos, incólumes e sem mácula
talvez sejam os livros sejam herméticos
ou talvez hermes esteja mesmo lá, se tenha
transformado por meios químicos em pasta
de papel e se transformado. assim vira os
olhos, página a página, segundo a segundo
e não se lembra se alguma vez houve um
terceiro género na poesia.
jorge vicente
7.
façanhas infantis que desafiam a sensatez
refletem o poder da vontade:
as crianças se vinculam aos deuses
e se elevam à categoria de divindade
digamos que dimensões antagônicas se resolvem
em unidade no aspecto da pureza humana,
o conhecimento não covarde das letras personifica
a faculdade de realizar o olhar que se abre em luz
escutar o sol nas palavras e cantar na escuridão
das páginas cura estigmas e revolve o obscuro
sonia regina
8.
o obscuro soletra a noite. cinco palavras.
uma. duas. as três personificações da
lua, como num conto de mizoguchi.
quatro. o apocalipse está perto e
não é nada daquilo que imaginamos.
os quatro cavaleiros combinaram entre
si trazer quatro presentes de prata.
o quinto somos nós e o presente~
o dom da lua.
jorge vicente
9.
o obscuro canta no porão, no sótão brilha a lua
acima dos olhos que só vêem uma face
e não libertam o dragão selvagem prometido.
retirar o fogo das nossas sombras é a alquimia
que nos faz nascer da prata após as núpcias
do céu e do inferno.
sonia regina
10.
respondo às núpcias: existe uma génese
um começo
uma inclinação dos eixos
aquilo a que os padres chamavam,
o pecado.
a inclinação da terra na direcção
da terra-madre: a sacrossanta
face de um papel de cosmos.
jorge vicente
11.
o habitante dos céus, o intangível,
palpita na realidade mundana
e se inclina para as profundezas,
para os subterrâneos:
fonte de memória do que foi, é e será;
mundo da essência anterior ao pecado;
reino que dá substancia à forma
e ao firmamento, além do profundo
dos mares, em todos os lugares.
sonia regina
12.
o habitante dos céus vive em todos
os lugares, em todas as folhas, em todos
os pedaços de chão ternamente repartidos.
é dele o céu que vemos, o mar que abrimos,
o pão que queimamos, quando acordamos
para o céu de agosto.
eu sei que não é agosto e que o habitante
dos céus não tem verão, mas sabe tão bem:
a torrada ao acordar e o sono dos homens
que se deixam ficar
jorge vicente
13.
quando todas as sombras são translúcidas,
é diáfana a presença no azul.
ternamente o habitante dos céus sonha
um verão para os homens que não respiram
nada que não se perca pelo caminho
nesses dias de madorna em que tudo foi cansaço,
nenhuma angústia sem razão anunciou janeiro.
tampouco o razoável explica um estado posterior
àquela melancolia que chorou a última lágrima
violentamente, sem beleza.
em meio ao emaranhado de pães torrados,
a sizígia.
sonia regina
14.
o azul cresce no mar
e nas mornas ondas da terra.
tenho os olhos da cor das algas,
das senzalas e dos quilombos
em que passeio. o mar é tudo
isso: a libertação do homem novo,
do homem velho, do homem antigo.
é a sombra translúcida dos antepassados
que vieram antes dos peixes.
jorge vicente
15.
andamos em campos minados,
lagos, rios, planícies, planaltos,
sobre pedra e barro molhado
nos pinhais, praias, cabos,
nos pântanos assombrados
temos corrido, rido, nadado
infinito é o gosto de verão que criamos.
pomos no sabor de cada onda furada
uma alquimia. fortuita, no silêncio d'água
a pergunta na pele esconde dos olhos
os instantes oferecidos, o despertar
das eras azuis avoluma o oceano
e maya agoniza, no estio.
sonia regina
16.
maya agoniza no mês das chuvas,
a terra índia salpicada de lençóis d'água
cálida
em santa catarina, os homens fogem e
as mulheres gritam pelo seu anjo protector.
tenho uma infância que não é minha
e uma dor de água que me encobre o corpo
inteiro. salpico-me pelas lojas e pelos cafés
da avenida enquanto os carros passam desabrigados.
sei que, em portugal faz sol, mas não há
tanta poesia. os homens escrevem e salpicam-se
de versos. de dor, eu sei, mas deus tudo vê
e nada resolve.
jorge vicente
17.
sucumbe maya, soterrada no imenso vazio
sem causa e sem fim. erguem-se os cristais
d'água ao chamado do coração da rosa
evaporam, cumpridos os sete decretos
num espaço sem tempo selam-se as lágrimas
mordidas no fogo que purifica a terra índia
sem anjo protetor, santa catarina ilumina seu dia
salpicando-o de versos, clareando as entranhas
da noite, convocando o sol
das profundezas das águas ouve-se o gemido
da saudade, na gênese da separação
sonia regina
18.
não há separação possível, minha boa amiga,
o verso é tua mudez, assim como as tuas
palavras
a tua fronte e o teu olhar interno;
o teu olhar e o sorriso por detrás dos dedos
nunca há separação porque santa catarina
escreve versos. e lê-os para mim. sabes, o
coração dos místicos está sempre acordado.
e é sempre imune ao rebentamento da chuva.
jorge vicente
19.
li versos, vi a morte, dei condolências ao belo
emudeci, mas não retornaram ao inevitável
as minhas palavras nem neguei o fruto possível
dos dedos que sorriram da câmara mortuária
nada enterrei do dizimado, nada busquei.
um sorriso de inverno acordou, da crueldade
da paixão das águas
no ventre do vento norte guardei raios e trovões,
o sudoeste lambeu o tudo ofertado à invocação
dos sentidos, peixes saltaram do baú de tesouros
aberto, ao léu. desfrutado, a dois.
sonia regina
20.
a dois, o tesouro é partilhado.
numa nuvem de peixes, dividimos o mundo
e cantaremos numa língua desconhecida.
será talvez a língua da água, a areia debaixo
da areia, a pedra abaixo da pedra
como se não houvesse lava e apenas terra e vento
e homens grandes no centro do universo.
dizem que abaixo dos pés faz calor
eu digo: abaixo da pele, temos todos
os astros que possamos invocar.
jorge vicente
21.
tesouros compartilhados não me ocultam na trama
da minha fábula, narrativas não são atos de caridade.
a linguagem flui nas representações. cobiça que se fixem,
na terra e na água, o fervor e o júbilo, a ternura, um tempo
e distância não lineares
e, a língua, arde. queima em meus versos ao colher o enigma,
o segredo do sensível liberto na pele. é o fascínio do poema
aguardando a tradução num idioma possível.
sonia regina
22.
e o idioma possível
é a alma de dois poetas se juntando
e escrevendo juntos.
a plena lua,
o mar das gentes e
das palavras
que
nunca se desgastam
e nascem sempre.
a fénix das asas longas.
jorge vicente
Diálogo Poético realizado na lista de criação e discussão literária Encontro de Escritas (Portugal)
Jorge Vicente é residente de Letras et cetera
Sonia Regina é fundadora e editora de Letras et cetera
Imagem: autor ignorado
2 comentários
Ficou maravilhoso o nosso diálogo, minha Amiga!!!
Muitos beijos
Jorge
Sim, ficou mesmo bacana, querido!
Muitos beijos pra ti também,
da Sonia
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