sexta-feira, 23 de março de 2012

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TEODORO, O BLUES DE AZUCENA - Milena Martins

“La tetra fiama che s’alza,

che s’alza al ciel”.

(Guiseppe Verdi, Il Trovatore)

Teodoro, ela diz em silêncio, eu ainda acabo enlouquecendo! – E passa as mãos brancas nos cabelos crespos apenas porque não há mais nenhum gesto grandioso a se tentar. O estoque de atitudes ponderáveis acabou. E, afinal, nada mais parece fazer sentido. O plausível morreu na guerra, queimado numa das fogueiras talvez..– Teodoro – ela repete, os lábios gesticulando a palavra muda, o enjoo agora verdadeiro lhe crispando o estômago –, ainda acabo louca. Com essas janelas trancadas, o fogo lá fora, esse livro aberto cada dia numa página diferente sobre a mesa.

Ela ainda lembra do que lhe parece cotidiano, mães com crianças de mãos dadas nas ruas, carros carregando gente pro trabalho, pra escola, pro motel, pra cadeia, uma barraca de frutas em frente ao prédio rosa da rua de trás, o vendedor lendo o caderno de fofocas de um jornal barato, nenhum freguês. Mas por esses dias de tudo anormal, isso que acontece quando o inevitável chega ao extremo e a ordem das coisas se modifica sob pena de nunca retornar, não há mais cotidiano. Nem mães com crianças, nem carros, nem prédios cor-de-rosa, nem vendedor de frutas, talvez apenas flores sem poder. Faz não mais que uma semana. Quando a guerra há muito anunciada enfim eclodiu. Ele bateu a porta atrás de si ao sair rumo ao comércio mais próximo. E isso será pra sempre. Como uma mancha de nanquim sobre uma folha de papel. Como o passado imutável.

É noite, a luz na vizinhança foi interrompida em razão de um tiro dado por mais um homem sem rosto no transformador da rua. Ela não consegue sequer imaginar os soldados daquela guerra, como se tudo fosse, e tudo é, tão distante da realidade que parecesse sonho. Ninguém mais transita pelas calçadas. Tudo o que lhe chega é a fumaça e o clarão, ao longe, de mais uma das fogueiras acesas pela cidade. Gritos. Alguém comenta na casa ao lado que pelo menos eles – esse eles impessoal que nunca sabemos exatamente quem é – deixaram que as pessoas saíssem antes de o ônibus ser queimado. Ouvindo isso, ela quase chora. Ela se esforça muito, mas esqueceu como se faz.

No rádio que a falta de energia impede de funcionar, estava tocando Summertime há uma semana, ela recorda. Pensa algo como: essa música já foi uma ópera. Teodoro lhe disse isso, quando lhe deu de presente de quinze anos um LP raro da Janis Joplin. E, pra não lembrar de Teodoro, ela agora lembra de Verdi. Ela gostava de Verdi. Ela é contralto, voz rara. E sempre cantou tão bem que podia ter sido, podia ter sido, não sabe exatamente, mas algo, grandioso talvez. Tem potencial pra lenda. E sempre teve muito potencial pra se convencer de que é aquilo que nem ela mesma acredita ser.

Rápido, ela se abaixa ao lado da janela. Esconde-se. Dois disparos soaram perto. Alguns gritos também. Ela já não sente medo. Chegará a dizer a um conhecido – num dos muitos telefonemas preocupados que começaram há não mais que uma semana e prosseguirão por mais algum tempo até todos se acostumarem com sua nova condição – que não sente mais nada. Mas é mentira. Sente falta. E, sentada no escuro, no chão gelado ao lado da janela sempre cerrada desde que a guerra começou, uma semana sem luz elétrica por causa do tiro no transformador, uma semana sem luz do sol por causa do medo que sente de abrir as cortinas grossas que Teodoro escolheu sozinho sem pedir sua opinião, abraçada aos joelhos, nos olhos as lágrimas nunca secas porque nunca derramadas, ela imagina a voz dele dizendo assim:

Luiza Vidal.

Só isso, nome e sobrenome. Como antes, como sempre.

Como quando ela tinha doze anos e estava sentada numa das cadeiras do auditório da escola assistindo à primeira aula que ele lhe deu e, antes de liberar a turma, ele chamou nome por nome pra anotar a presença.

Naquela época ele era jovem. Tinha os cabelos longos até a cintura, negros, lisos, e ainda usava aquela camiseta do Metallica que hoje serve de tapete da área de serviço. Naquela época ele mandava a turma sair e pedia que ela ficasse, inventando uma desculpa pedagógica qualquer pra permanecer mais tempo junto a ela num mesmo recinto. Ele se aproximava com cautela, pra não a assustar, pra que ela não contasse aos pais, à direção, às amiguinhas, whatever, que achava que o professor estava dando em cima dela. E estava. Ele, afinal, tinha uma reputação, uma carreira, e precisava do emprego, porque era só um adolescente tardio, um cara tão cheio de sonhos impossíveis que acabou não realizando nada do que podia, que acabou a faculdade tarde demais e não tinha porra nenhuma nessa vida além de um apartamentinho de um quarto alugado na zona norte, cheio de livros e discos de vinil, um Chevette tubarão vermelho com mandalas penduradas no retrovisor, dois pares de tênis All Star e uma calça jeans que rasgou de velha. E tudo isso era o que lhe dava um certo ar misterioso de encanto intocável, de supremacia inalcançável, de sagrado. Ele passava a mão no rosto branco dela, nos cabelos crespos dela, olhava fundo com os olhos claros dele nos escuros dela, e ela se apaixonou. Talvez não fosse preciso nada disso, aliás, pra que ela se apaixonasse. Ele era bonito e doce, como um pai, mas sem a proibição do incesto. E eles sabiam que tudo aquilo era errado. Mas não queriam acertar.

Saudade. Dizem que essa palavra só existe no português, ela de repente devaneia sem motivo. Rindo, pensa na mentira dessa informação e, em seu nunca satisfeito desejo de ser especial, põe-se à parte do restante dos meros mortais quando delibera uma teoria qualquer pra que tal bobagem tenha se disseminado tanto pelo povo brasileiro. Algo como a-vontade-que-os-inúteis-e-burros-brasileiros-que-não-são-porra-nenhuma-nesse-mundo-têm-de-se-sentirem-especiais. Ela é muito inteligente e culta e talentosa, ela sempre conclui, concluindo logo após que está mentindo pra si mesma (coisa que nunca admitirá a ninguém), ela é muito inteligente e culta e talentosa e sabe que em galego existe a palavra soidade e sabe que galego não é mais português. Deve saber, e diverte-se com a ideia, mais sobre a Galiza que a própria Nélida, sobre quem ela discorre com perfeição milimétrica sem nunca (e disso os outros não sabem) ter lido uma citação sequer, que dirá uma página, que dirá ainda um livro inteiro.

Ela defende que é preciso conhecer pra opinar, mas tem muita preguiça. Então colhe sempre as-opiniões-mais-abalizadas-e-notáveis, pra que todos pensem que ela sabe muito, mas ela não sabe, que ela é muito culta, mas ela não é, que ela é muito talentosa, mas ela mesma já não se ilude. E ninguém sabe que ela é só um personagem.

Mas Teodoro sim sabia tudo, ela pensa, sabia tudo dela melhor que ela mesma, mais que ninguém. Ela quer querer chorar, mas não consegue. E pensa clichê que há tristezas tão grandes que chorar não adianta.

Sirene. O reflexo vermelho girando girando girando se mostra na parede cor-de-rosa oposta à janela abaixo da qual ela se senta protegendo-se dos disparos, da guerra, do fogo, da morte. Ela pensa: mais um carro de polícia, de bombeiros, uma ambulância talvez, passando pela rua sitiada em direção a mais vítimas. E se pega procurando uma razão pra ainda se esconder do perigo, da morte, da guerra, dos riscos. Tanto quis riscos, viver de extremos, de limites quando tinha Teodoro. Tanto não quis mais ter Teodoro, que era mais velho e já tinha vivido a juventude desregrada que ela queria estar vivendo agora, tanto o quis longe só pra poder correr correr correr correr e se realizar na vitória sobre as chances de cair. E agora? Que me impede de me jogar voluntariamente aos autos-de-fé sem plateia pela cidade?, ela se pergunta lembrando da dança de sacrifício da Sagração da Primavera, pela minha própria liberdade, talvez!

Sente algo atrás das cortinas fechadas, atrás da parede na qual ela se encosta, pra além da janela abaixo da qual ela se senta. O perfume chega antes de qualquer certeza. Ela pensa que está começando, mais uma vez, mais uma noite, e que talvez seja assim daqui pra frente, por todas as noites que virão. O coração se aperta agora, o estômago se contrai. Suspira no meio do silêncio e não se escuta. Ainda acaba enlouquecendo. Ou a loucura já é tão forte que ela não se sabe louca, como acontece aos mais loucos dos loucos. E então, ela delibera a esmo, sentir a loucura à espreita é sentir a sanidade a retornar.

Quinze anos antes, ela se recorda. Numa sala escura de uma noite escura, exatamente como agora, mas sem a guerra, sem o medo e sem o caos. Apenas ela e Teodoro, ouvindo a Sagração da Primavera. Tão heróis de novela. Tão perdidos. Querendo o par perfeito, o amor pra vida toda, pra viver em harmonia e ser felizes pra sempre. Tão tolos, meu Deus, tão pequenos. Ela tão jovem. Escalando o abismo etário que sempre os separaria, metáfora clichê. Naquela noite, quando ele a beijou pela primeira vez. Cena tirada de comédia romântica, novela mexicana, drama B. Tudo tão bonito, tudo tão inocente, tão falso.

Pelo menos pra ela. Ou foi ela a própria falsidade desde o início. E sobe-lhe a culpa pela garganta na forma de um vômito contido que ela teima por não extravasar desde que Teodoro bateu a porta atrás de si, não mais que uma semana antes, rumo ao comércio mais próximo. Culpa sim, e é um sentimento compreensível. Porque ela foi muito filha da puta mesmo, muito mesquinha mesmo, muito ela mesma com o pobre Teodoro, apaixonado, o coitado, que deve mesmo tê-la amado até o fim.

A presença caminha até a porta, ela sente o movimento frio contrastando com o calor do dia e a fumaça da fogueira acesa tão perto. Sente o perfume denunciando a entrada daquela presença entre as paredes da casa e quase se amedronta. Mas antes que o medo possa chegar, ela se lembra de Teodoro e seu amor incondicional. Ele deve mesmo tê-la amado até o fim, e sempre disse, olhando fundo nos olhos dela: confie no Teodoro. Ele não vai deixar que nada ruim te aconteça, Luiza Vidal. Ele tinha um jeito caricatural de falar, como um professor de jardim de infância, e pedia constantemente a ela: look at me! Deeply in my eyes!, apontando com dois dedos pra dentro dos próprios olhos. Depois a abraçava forte, repetindo seguidamente nome e sobrenome, como se ela fosse algo solene. Mas ela não era.

Ruído de papéis se roçando. Ela olha assustada na direção da mesa de jantar e ainda pode ver a página se virando até repousar fora do seu campo de visão. O tempo está quente e a casa, completamente trancada, deixa o ar ainda mais abafado do que é comum no verão carioca. O cheiro de fumaça dificulta a respiração e ela se força a crer que está delirando. Ela sabe que não há sequer uma brecha que possa deixar o vento entrar. Mas insiste por deliberar que está frio lá fora. E que o vento está entrando por alguma passagem desconhecida. Todos os seus esforços agora se voltam à árdua tarefa de manter os pés no chão, não acreditar em fantasias, encarar o real. Até porque, daqui pra frente, não haverá mais ninguém a lhe ensinar.

Silêncio pela vizinhança. A fumaça começa a arrefecer. O perigo parece ter passado, mas ela não se levanta do chão. Em vez disso, para a pensar, como sempre, em mais um dos contos geniais que poderia ter escrito, mas nunca lhe sairão. Algo intimista, quem sabe? Quase um diário. E então formula algo assim:

Eu juro que estou esperando alguma coisa. Só não sei o que é. Durmo às seis da manhã, acordo às duas da tarde. Tudo vazio. A casa sem você, as ruas sem ninguém. É por causa da guerra. Ninguém se arrisca, sabe? Não, você não sabe, não está mais aqui pra ver... E então não quero comer, não quero beber, não quero viver, não quero morrer. A casa é pequena, mas estou perdida. Vejo tanta barbárie que o aro grosso e preto dos meus óculos está começando a pesar... Há cinco dias, desde que você fechou a porta atrás de si, tanta gente me telefona. Gente de quem eu nem me lembrava. Gente que nunca me deu a mínima. Gente, tanta gente. É gente demais. Querem saber se eu estou bem. Querem saber de mim, de tudo. Querem saber demais. Fazem perguntas demais, Teodoro. Teodoro, droga, Teodoro!

Ela volta umas seis vezes no texto, ou mais, pra reformular algumas partes, deixar tudo mais poético. E, primeira vez, como somente estar próxima da anormalidade, da barbárie, da guerra, do lado mais extremo da vida poderia lhe proporcionar, é honesta em admitir: sou um pastiche de Caio F.

Talvez por isso tenha desistido. Não apenas desse texto. Ou melhor, desse também. Mas sim, ela desistiu. De escrever algo realmente bom, de escrever enfim. E de cantar e de desenhar e de atuar e de tudo. Agora Teodoro, o guru, o mestre, o amor de juventude, o professor, não estava mais ali. Ela estava sozinha, e não tinha mais ninguém a lhe aconselhar, e Teodoro nunca deixou que ela pintasse os cabelos de vermelho. Mas nem era mais a música da juventude o que tocava no som. O som estava mudo e ela, a Luiza Vidal, nome e sobrenome, ia perder sozinha e jamais ganhar. Só agora ela sabe disso.

Teodoro. Professor Teodoro. Ele era tão bonito, alto, com uns olhos caídos, claros, de cílios longos, a boca com lábios quinze anos mais velhos que seriam os únicos a beijá-la em quinze anos de casamento. Ele era seu professor, seu príncipe-sapo, final feliz. E ela era a menina inocente dele, sua tabula rasa. Estavam condenados a se enganar por quinze anos, desde aquela noite, aquele beijo no escuro. Pelo resto daquele casamento precipitado. Era tudo um grande engano, ela começou a pensar anos e anos mais tarde, naquela casa, naquela vida, sempre junto do mesmo homem mais velho, que já tinha vivido tudo o que tinha pra viver e queria descansar com conforto em frente à televisão seu corpo de lugar-comum sem grandes conquistas, um cara tão normal, o mesmo cara de sempre, de antes, que teria de ser o mesmo até o fim. Mas ela aceitou o jogo, assinou o contrato. E sempre teve tanto medo, tanto medo de, não sabia ao certo. Saberia agora?

Cuidar de si, maybe. Se ela pudesse viver a seu modo e fazer todas as loucuras inconsequentes que desejava, se ela pudesse escalar o Everest e pular de asa delta, usar todas as drogas, abandonar tudo e fugir pro Alasca num Chevette tubarão vermelho com mandalas penduradas no retrovisor, se ela pudesse viver seu ideal idiota de juventude transviada estilo anos setenta, tão bobinha ela, com esse imaginário desregrado ultrapassado, renegando a própria geração, porque ser jovem agora é estudar, trabalhar, ter três estágios, um curso técnico e passar de primeira no vestibular, se ela pudesse deixar a sua vidinha babaca de subúrbio e surtar, aloprar, fugir não sabe pra onde, mas pra longe, muito longe dali, se ela pudesse tudo sem consequências, se ela pudesse mergulhar nos perigos da vida e tivesse sempre pra onde voltar na hora do aperto, um lugar seguro que a recebesse sem pedir satisfações, sem repreender, sem cobrar, então ela iria, ela viveria, ela se arriscaria. Mas ela sabe que isso é só uma ilusão que ela conjetura nos momentos ruins, pra se sentir melhor já que a mentira é só o que ela tem, porque a sua realidade é uma merda. Ela sabe que só existe um jeito de se viver como se deseja e é viver só, num acordo tácito com o destino, em que o papel dele é punir e o dela é aceitar. É o preço pela liberdade, ela sabe. E pensa então que, nem que seja ao destino, a gente sempre tem que se submeter.

Teodoro dizia do quanto ela era inteligente e culta e talentosa. Às vezes ela pensa que ele realmente a amou até o fim. Ele foi honesto, ele foi. Ela é que não sabe conviver na mesma sala por mais de cinco minutos com a verdade plena. E pensando assim, ela conclui o quanto esse clichê grandioso é reducionista e soa falso. Riria se não quisesse tanto voltar (no tempo, nos erros, nesse si mesma que se apoderou do que ela poderia ter sido e em que nunca saberá mergulhar). Mas não ri, o que não faz diferença.

E mais uma página se vira no livro aberto sobre a mesa. Um aperto fustigante no peito, um soco na boca do estômago, todas as mentiras de não mais que uma semana antes vindo assombrá-la junto com a presença informe e perfumada que entrara pela porta não mais aberta desde que Teodoro a bateu atrás de si.

Seus tios-avós tinham uma casa alugada em Vicente de Carvalho, ela viaja. As paredes eram verdes e ela costumava arrancar pedaços do emboço que caía de velho. Seus pais tinham morado num apartamento em Madureira que eles nunca pintaram, por catorze anos, porque não era deles. E as figuras que ela imaginava nas deformidades da pintura durante a infância ficaram presentes frente a seus olhos até os catorze anos, quando o mundo começou a adoecer sob seu olhar.

E então ela ri, conjeturando que aqueles pensamentos misturados são dignos de uma boa bebedeira. Quer um trago fundo do maço de cigarros quase acabado que ela deixou sobre a pia da cozinha, quer um gole forte da garrafa quase intocada de uísque deposta sobre a cristaleira. Mas agora, sentada no escuro, Luiza não tem coragem de se levantar e ir buscar a garrafa que Teodoro tinha saído pra comprar já durante a guerra. A mulher tinha fingido preocupação: não vai, não sai de casa (disse no jornal que era pra ninguém sair de casa, por causa da guerra, mas eles não veem jornal, eles não veem tevê, eles estão em outra, ela pensava com orgulho enquanto assistiam juntos à mensagem do telejornal local que os pais dela tinham telefonado unicamente pra pedir que assistissem, porque era importante, é perigoso, estão queimando coisas por aí). Ela tinha fingido se preocupar com a saída dele. Mas ela não acreditava na guerra, porque o mal só acontece aos outros.

E ela não se importava nem um pouco com ele, quinze anos de casamento, ela e Teodoro, a aluna violada e o professor pervertido. Ela só queria o álcool, talvez um cigarro que ele trouxesse (ele dizia que eles tinham que parar, mas nunca parava nem mesmo pra dar o exemplo) ou uma erva que algum amigo lhes desse numa festa qualquer em casa. Os ecos de uma loucura longínqua, os restos da liberdade que ela nunca pôde experimentar, casada tão nova, presa tão cedo. Ela tentava de tudo pra fugir, nem que fosse da realidade. Nem que fosse pra dentro. Huxley explica, talvez Freud, quem sabe Todorov. Ela não sabia explicar.

Parando pra ouvir mais uma folha do livro se roçar contra as demais ao virar-se, Luiza agora imagina Teodoro sentado à janela de algum ônibus, rumo ao comércio mais próximo, com um sorriso idiota nos lábios quinze anos mais velhos que os dela, os únicos a beijá-la, talvez conjeturando, coitado, que ela tinha se recusado a preparar o espaguete por conta de algum desejo.

Ela não tinha sido feita praquilo, ela pensa, lavar chão, louça, saladas de tomates e alfaces sujas das prateleiras do mercado, bundas de crianças nunca nascidas que o Teodoro queria tanto ter e ela não, e amar um homem só, dar pra um homem só, uma vida comum de subúrbio pra sempre, sem grandiosidade, sem notabilidade, sem produzir algo, qualquer coisa, que a fizesse lembrada depois de morrer, pegando ônibus e metrôs lotados toda manhã pra ir trabalhar num lugar chinfrim que paga mal. Ela não tinha sido feita pro Teodoro, o cara quinze anos mais velho que tinha tido o direito de ser jovem e tinha exigido dela que ela ficasse velha com ele, mulher casada aos dezoito anos, fiel, prendada, comportada, madura, aos dezoito anos, maldito!, ela quer pensar. Mas agora, sentada no escuro, no meio da guerra, sem ele, ela só consegue sentir falta. Nem mesmo medo pelo perigo do conflito, nem mesmo a raiva que tinha semeado, regado, deixado florescer e crescia quinze anos a fio, desde a primeira noite dolorosa e frustrante de amor na lua-de-mel num hotel barato da serra gaúcha, um frio do cão.

E ela, que na juventude de menina feia tinha querido tanto um homem pra esfregar na cara das menininhas bonitas e populares da escola, ela que estava agora ficando velha, começando a enrugar, começando a decair, conclui que há muito tempo já tinha outros planos e não queria mais aquela vidinha estilo folhetim, conhecer alguém, namorar, noivar, casar, ter filhos, criar os filhos, pagar a educação dos filhos, chorar na formatura, no casamento, no nascimento do primeiro filho dos filhos e então finalmente morrer tendo vivido pros filhos. Teodoro nunca percebeu, todas as noites, quando ela se trancava no banheiro, que ela assinava às escondidas.a carta de alforria da maternidade.

E, repetindo a conclusão a que chegou anos atrás, Luiza pensa que o casamento vem depois do final feliz.

Antes de poder discernir qual é o barulho que está ouvindo, ela se volta à mesa, automaticamente. E vê que mais uma folha está se virando no livro aberto. Ela deixa uma lágrima escorrer e, sem pensar, enxuga-a dos olhos imitando com sua própria mão os movimentos que a mão de Teodoro costumava fazer ao acariciar seu rosto branco, seus cabelos crespos. Só depois de a lágrima estar seca ela percebe que aquela mão não é a dele e que ela deseja a mão dele. E então outras lágrimas começam a escorrer.

Se você estivesse aqui, eu estaria gritando, ela soluça em silêncio. Eu mandaria você abaixar o volume da televisão, a tampa da privada. Eu recusaria com raiva o abraço que você insistia em me dar enquanto eu cozinhava o almoço, e diria furiosa eu-já-disse-mil-vezes-que-é-pra-não-me-atrapalhar. Eu te mandaria apagar o cigarro infeliz que você nunca largou ou me dar um pra eu fumar junto. Você recusaria e eu gritaria ainda mais. Eu te obrigaria a dormir no outro quarto por causa do seu ronco alto. Mas você não está aqui. Nunca mais estará.

Merda!

Ela chora, chora, chora. E chora mais. E não consegue parar de soluçar no escuro. Vai se deitando no chão enquanto escuta mais uma página se virar no livro aberto sobre a mesa. Não se assusta. Não sente mais medo, apenas falta. E a culpa se revolvendo no estômago crispado de um enjoo verdadeiro e maligno, tumor de remorso empedrado. O silêncio é tão avassalador que ela prefere os tiros, as explosões, os gritos da guerra. Porque a guerra lá de fora não é dela, mas essa que ela agora trava é dentro de si.

Tinha sido tudo mentira, por quinze anos. Ela não amava mais Teodoro tinha quinze anos. E nem mesmo sabia porque tinha se casado se o amor tinha acabado, e nem mesmo sabia porque o amor tinha acabado se ele era, agora ela sabe, o homem perfeito, seu príncipe-sapo, final feliz. O herói de contos de fada que ela tinha desejado na infância, tinha procurado na adolescência. E tinha encontrado. Nele. O homem dos seus sonhos. O homem que acordava à noite apenas pra olhar pro lado e ver se ela estava bem. O homem que perguntava se ela estava com fome numa viagem longa. O homem que estudava com ela por toda a madrugada na véspera de uma prova difícil. O homem que comprava ingressos de cinema e pipoca e refrigerante pra comemorarem mais um aniversário de casamento. Que a levava pra um jantar romântico sem razão. Que lhe trazia água sem que ela pedisse nos dias quentes. Que nunca esquecia o dia do primeiro beijo. Que cuidava dela quando ela adoecia e nunca esquecia a hora de cada remédio. Que dava presentes de Natal pra sua mãe. Que preparava o maldito bolo de batatas quando ela ligava da rua dizendo que tinha sido demitida, pra animá-la, ou promovida, pra comemorar com ela. O homem que, com aquele sorriso aberto, com aqueles olhos azuis, voltava do trabalho todos os dias e lhe dava um beijo de quem sentiu falta dela o dia inteiro. Que a chamava pelo nome e pelo sobrenome, como se ela fosse algo solene, e ela não era.

Mais uma página se vira no livro aberto sobre a mesa. Luiza, Luiza Vidal, ela repete no escuro, tentando dar à própria voz a entonação de Teodoro. Há não mais que uma semana, há exatos cinco dias, a voz de Teodoro tinha dito que ia sair. A voz de Teodoro era doce, aprazível de ouvir, com um sotaque diferente que ela nunca soube de onde era. Luiza, Luiza Vidal, ela vai se acalmando, secando as lágrimas dos olhos. Minha culpa, seus lábios gesticulam, minha, minha! Minha culpa, Teodoro! Por minha causa, tudo por minha causa.

Tudo porque ele a amava demais. E ela não entendia, e ainda agora não entende, como ele podia amar tanto uma mulher que o maltratava, que gritava com ele, que reclamava de tudo o que ele fazia, até mesmo, ou principalmente, pra agradá-la, uma mulher que, ao lado do homem que tinha passado quinze anos na única ocupação de fazê-la feliz, nunca tinha se mostrado nem mesmo agradecida. E ela não entendia, e ainda agora, caída no chão, no escuro, no silêncio quebrado apenas pelas páginas viradas no livro aberto sobre a mesa de jantar, não entende, como ele podia ter passado quinze anos amando uma mulher que, em tudo, cada gesto, cada fala, mentia seu sentimento pra ele, fingia um amor natimorto, e, ainda pior, sempre tinha sido muito má atriz, como ele podia ter passado uma vida sustentando uma mulher como ela, cuidando de uma mulher como ela, tão mesquinha, tão cínica, tão aproveitadora, e tão falsa, acima de tudo falsa, falsa, muito, muito mentirosa, como ele podia amar cada detalhe de alguém que desgostava de cada detalhe dele. Ela nunca entendeu. Ela nunca entenderá de onde veio esse amor absurdo.

Que fez Teodoro deixar sua leitura inacabada sobre a mesa e ir até a cozinha apenas para ver se Luiza estava bem. Ela preparava o almoço. Ele tinha sugerido espaguete, ela recusou. Ela nunca concordava com ele. E, solícito, ele beijou-lhe o rosto dizendo que o cheiro da carne moída estava uma delícia, que aquele bolo de batatas ia ficar maravilhoso – sempre grandiloquente o Teodoro. Ela lhe repeliu o beijo, como de costume, e disse que já-tinha-dito-mil-vezes-que-era-pra-ele-não-a-atrapalhar.

Enquanto mais uma página se vira no livro aberto sobre a mesa, Luiza fecha os olhos. A cabeça lateja. Quer um banho quente pra curar a enxaqueca, mas não há mais cura. Ilude-se na vontade de acordar, mas o pesadelo já cruzou a fronteira. E quando ouve mais uma folha virar-se, pensa que a realidade soa tão louca e a loucura soa tão pesada que é mais fácil gritar.

E mantém-se muda por não saber o que fazer após o grito. Não quer gastar ainda sua última opção.

Teodoro devia achar, ela agora pensa, enquanto se recorda, que ela estava sempre estressada com ele por algum motivo de trabalho. Ela não era assim, afinal, no início do casamento. No começo, ela conseguia fingir. Depois que ela começou a trabalhar tudo ficou diferente. Mas não era culpa do emprego, era dentro dela que tudo tinha mudado. Ela não queria mais aquela vida. Ela não queria mais aquele homem. E ela não queria deixar aquele conforto. Ela não queria se responsabilizar pela própria destruição. Então ficava inerte, ao lado dele, sem mudar nada, a cada dia tratando pior o homem que, vendo-a tão triste, nervosa e frustrada, e sem ter ideia de que era ele mesmo o problema, apenas aumentava mais e mais os carinhos, os agrados, os passeios, os jantares sem motivo, as flores sem razão.

As amigas invejavam Luiza e isso, ela agora cogita, talvez tenha ajudado a retê-la todo aquele tempo ao lado de Teodoro. Quando saíam com os amigos, ela o tratava com carinho extremo. Ele sorria abertamente, satisfeito, tão bonito, os olhos claros ficando límpidos a cada demonstração de carinho dela.

Então ele redobrava a atenção com a mulher, que já era normalmente demasiada, beijava-a muito, abraçava-a, trazia-lhe um drinque, um doce, o que ela preferisse, o que pedisse, o que quisesse. Pobre Teodoro, Luiza chora, tão apaixonado, tão dedicado, recolhendo apenas sobras de um sentimento nem sequer existente, vivendo enganado das aparências que Luiza queria manter pra se mostrar afortunada às amigas que ela tanto detestava e com quem convivia só porque não tinha nada melhor pra fazer.

A velhaca metida a adolescente, loira tingida, que era amante do chefe e tinha dado pro filho de um deputado. A negra alta insatisfeita com o cabelo, que dizia ter assumido a negritude depois de tentar sem sucesso sete escovas progressivas. A gorda insatisfeita com o corpo, que tinha um marido barrigudo e um filho retardado. Um grupinho de mulheres frustradas que se faziam de solícitas umas às outras enquanto tentavam exibir o que não tinham, pretender-se o que não eram. Um grupinho de mulheres frustradas metidas a intelectuais liberais pra-frentex, mas com casamentos desgastados ou desfeitos, sonhos mofados, a decrepitude da velhice à espreita. E Luiza, perdida ali no meio, tão culta, tão inteligente, tão talentosa, tão diferente, jovem, bonita, com um marido que ia ganhando a cada dia aquele charme de meia-idade, uns cabelos grisalhos nas pontas das costeletas que ele manteve como resquícios da juventude roqueira, e dedicado ao extremo à mulher que ele amava. Pobre Teodoro, Luiza chora. Ela tinha mesmo sido muito filha da puta com o pobre Teodoro.

Que nunca tinha conseguido muitas coisas na vida, mas fazia sempre de tudo pra dar a ela o melhor. Que tinha financiado aquela casa em vinte e cinco anos gastando toda a sua pequena poupança e o fundo de garantia só porque queria deixar a mulher estabilizada e protegida se algo acontecesse a ele. A casa fica num bairro residencial quase sem comércio, um pouco longe de tudo, mas é um bom lugar, dizem os parentes, perto da praia e com bastante transporte, uma vizinhança calma e silenciosa, muitas árvores. A casa é pequena, mas bonita, e Teodoro sempre tinha feito sacrifícios pra mobiliá-la com tudo de melhor. Sempre tinha feito sacrifícios pra dar à mulher tudo de melhor e ela tinha passado quinze anos sendo mesmo muito filha da puta com ele.

Tinha sido muito falsa, muito cínica, muito má. Durante todos aqueles quinze anos e mais ainda naquela manhã, enquanto preparava o maldito bolo de batatas que o marido tanto detestava, quando fingiu novamente passar mal nos braços de Teodoro, fez-se de enjoada e correu ao banheiro. A comida queimando no fogão, o bolo de batatas, maldito, que ela adorava. Vinha usando aquele teatro como forma de escapar do toque de Teodoro havia duas semanas. Fazia tampo não suportava mais olhá-lo, tê-lo perto, aspirar o perfume, sempre o mesmo, que ele usava todos os dias e denunciava sua chegada. Mas desde duas semanas antes, o toque era o que mais a incomodava. Luiza fugia do toque daquelas mãos grandes, de dedos longos, morenas, nos seus cabelos crespos, no seu rosto branco, nas suas mãos brancas de dedos curtos. Apenas fugia, trancava-se no banheiro, teatral, má atriz, e ficava lá até que o marido desistisse de bater à porta pra saber se ela havia melhorado. Jazia lá dentro, em silêncio, de olhos fechados, com uma vontade enlouquecedora de andar de patins, de comer brigadeiro quente direto da panela e queimar a língua, de fugir pro Alasca num Chevette tubarão vermelho com mandalas penduradas no retrovisor, de dar um tiro no vizinho tricolor, de escalar a estátua do Cristo Redentor. De tomar uma atitude, qualquer uma, que mudasse tudo, mas não tinha coragem. E sempre tentava respirar fundo várias vezes pra sair do banheiro pronta a encarar o marido, o Teodoro, o professor pervertido que casou com a aluna violada, e que, quando a guerra acabasse, sairia de casa novamente, todos os dias, pra trabalhar, deixando-a livre da presença dele, pelo menos até chegar a noite, graças a Deus.

Mas naquela manhã, de porta trancada, Luiza se sentou sobre a tampa da privada, agarrou os joelhos e chorou compulsivamente sem razão alguma, ou por não ter razão alguma, ou por ter razões demais. Teodoro batia à porta, sua voz lá de fora repetindo nome e sobrenome, como se ela fosse algo solene, e ela não era. Mas pra ele aquele era certamente o momento de uma esperança solene. E talvez por isso ela chorasse também.

Teodoro queria tanto um filho, tanto. Ele estava feliz, ela sentia naquela voz que lhe pedia pra abrir a porta. Ele devia estar radiante na certeza de que ela estava grávida depois de duas semanas daquele teatro mal feito, ela era uma má atriz. Quem sabe ele acreditasse que ela chorava lá dentro, agarrada aos joelhos, por, depois de duas semanas de enjoos e corridas ao banheiro, admitir-se grávida, mesmo não querendo ter filhos, como sempre tinha dito. Sim, talvez ela chorasse realmente pelas esperanças que a mentira dela faria surgirem no homem apaixonado que ela tinha em casa, tão cego em relação a ela que nunca, em quinze anos de casamento, a havia visto, todas as noites, tomar escondida a pílula anticoncepcional. Sim, talvez ela chorasse por querer amá-lo. Talvez ela chorasse por não querer filhos, por nem mesmo querer dar ao menos essa alegria ao pobre Teodoro, que tentou dar-lhe todas. Ou por querer querer ter filhos e acabar não querendo. Ou por querer querer amá-lo e acabar não querendo.

Sim, ela chorava no banheiro, chorava, chorava, e na lembrança desse choro descompassado ela agora volta a chorar, mais forte que o choro forte de minutos antes. Talvez por querer, agora ainda mais, amar Teodoro, nem que seja só pra se sentir menos maldita. Ou talvez por não saber porque chorava no banheiro não mais que uma semana antes. Talvez por motivo algum, ou por todos. Ou talvez por ela. Por Teodoro, talvez. E sente uma dor forte, como um soco no estômago, quando mais uma página se vira no livro aberto sobre a mesa.

Ele só queria que ela abrisse a porta, ela se lamenta. Por que, por que não tinha pelo menos aberto a porta? Depois de todas as mentiras, de todos os anos de fingimento num teatro muito mal representado, por que não, ao menos, abrir a merda daquela porta? E olhar nos olhos, certamente felizes, e claros, caídos, de cílios longos de Teodoro. E tentar imaginar que quinze anos não se passaram e tentar alcançar por dentro um pouco daquele encanto de antes, tentar ver em Teodoro um homem intocável, sagrado, como antes. Antes daquele casamento precipitado, fracassado, ao longo do qual o marido tinha perdido o mistério. Ou então só deixá-lo olhá-la, pelo menos mais uma vez. Por que não?

Mas conseguiria, ela agora se pergunta, pra tentar se justificar, embora saiba que não há como, conviver eternamente com o olhar de felicidade que Teodoro teria lançado a ela quando a visse sair do banheiro? Honesta, isso que ela nem sabia mais que ainda sabia ser, conclui que não. E o alívio a esmaga por dentro. A culpa sobe, sobe mais, chega do estômago ao peito apertado e vai se chegando à garganta, amarga, cortante.

Desistindo, ele disse que ia sair. Voltaria trazendo um remédio e um presente. Luiza ouviu os passos de Teodoro se afastando da porta. E depois se reaproximando:

Confie no Teodoro, ele disse. Confie no Teodoro. Ele não deixa que nada te aconteça, Luiza Vidal. Os passos se afastaram e a porta bateu.

Só então Luiza deixou o banheiro. A casa estava vazia e ela se sentia melhor. O choro incontrolável foi sumindo, passando e, prática, ela voltou a cozinhar seu almoço. Quando Teodoro voltasse, ela já teria comido. Não gostava de sentar à mesa com ele porque odiava o jeito matuto como ele segurava os talheres. Ela, tão culta, e ele um capial nos modos à mesa.

Almoçou o bolo de batatas recheado de carne que sua mãe tinha lhe ensinado a preparar. O livro que Teodoro havia parado de ler antes de sair estava aberto sobre a mesa de jantar da sala, com uma frase grifada em amarelo, “importante é a luz, mesmo quando consome”, que Luiza olhou de relance durante a refeição.

E o dia passou. Ela livre, sem aquela presença dentro das paredes da casa fechada. E a noite chegou.

E o dia seguinte chegou. E passou.

Mas Teodoro não voltou.

Pensando nisso, ela agora se contorce no chão, de dor, de culpa, enquanto mais uma página se vira no livro aberto sobre a mesa. Teodoro!, ela fala sem som. Teodoro!, ela sussurra à meia voz. Sente novamente a presença junto a si, o perfume se aproxima, e ela se assusta, e o susto, e o medo, e o desespero somam-se à angústia, à culpa, à falta, à soidade.

Teodoro!

E pensa em Verdi. Ela gosta de Verdi. E quer cantar a ária de Azucena, mas sente que, se sua voz grave e rara de contralto sair, libertará apenas um berro mortal. Luiza já não se sente nem mesmo capaz de falar, a dor por dentro tão lancinante que não se permite ser extravasada às gotas.

Seus membros se gelam quando os dedos tocam seu rosto. Frios. Duros. Ela não tem coragem de abrir os olhos. Teodoro!, ela fala com esforço. Teodoro!, ela chama com a voz embargada.

Teodoro tinha ficado preso numa das fogueiras acesas pela cidade. A caminho do comércio mais próximo. Onde estava indo buscar um remédio pra curá-la de um mal inexistente. E um presente que ela nunca saberia merecer.

Sim, ela se engana, ou não, agora: ele a amou até o fim.

Teodoro!, ela se contorce pelo chão, ela rasteja, tentando fugir do toque daqueles dedos grandes, longos, frios, duros. Teodoro!, ela leva a mão ao vente, o estômago crispado, a culpa escalando a garganta, a vista cheia de figuras brancas circulando frente aos olhos fechados, e uma tontura de desmaio ante aquele perfume forte que a faz querer vomitar.

Teodoro!, ela grita. E grita, e grita, e grita, desesperadamente ela grita. Primeiro o nome, Teodoro!, Teodoro!, depois palavra nenhuma, apenas um desabafo desaguando dos pulmões, saindo junto com o sangue da garganta, jorrando junto com o vômito da culpa represada. Vomita, vomita, vomita, tenta gritar durante o vômito e sente o líquido acre sair pelas narinas, com gosto de remorso, de sangue e soidade. Vomita até se engasgar e tossir e tossir e tossir tanto que é preciso levantar o tronco pra que o vômito não a sufoque.

Depois se deixa decair novamente, as costas no chão de piso frio quente de verão e janelas fechadas. Permanece inerte, de olhos fechados, prestando atenção apenas nas reações do próprio corpo.

Enquanto a última página se vira, a luz retorna, e Summertime, no disco arranhado, volta a tocar.

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