segunda-feira, 9 de abril de 2012

0

MISTAKE THE TIME - Milena Martins

Ela queria um videogame. Mas só lhe deram uma boneca Barbie peituda e loira com vestido de lantejoulas rosa-choque. E aquela família era tão rica. Podiam ter lhe dado um videogame. Ela mandaria alguém à puta que o pariu naquela porra de noite de Natal se não fosse tão pequena, mas era ainda tão pequena. Ela tinha sete anos. E se chamava Ana Maria. E morava num bairro rico qualquer, de uma cidade grande qualquer. No fundo, ela mesma era uma qualquer. E sabia. Que tinha muito dinheiro ela sabia. E que não tinha nenhuma vontade também.

.

Mariana chegou da rua com duas notas de dez reais enroscadas no bolso, um pacote de pó branco e algumas folhas de cinco pontas. A madre do orfanato agradeceu com um beijo cínico e um safanão. Depois se trancou no escritório grande e saiu de lá sorrindo. Ela tinha sete anos, a Mariana, e ninguém sabia de onde tinha vindo. Só que tinha sido enrolada num saco de lixo e colocada ali na porta (grande, de madeira de lei, com uma maçaneta de ouro que roubaram duas vezes antes de colocarem a cerca elétrica em volta do muro) por uma moça pobre que todo mundo naquele bairro pobre sabia que vivia tentando se matar. E que era puta lá na zona sul. Mariana subiu pro quarto naquela noite de Natal. Dormiu em paz, porque não tinha esperança nem ansiedade. Já tinham lhe falado que não existe Papai Noel.

.

Ana Maria passou cinco dias pensando em cima da privada, chorando trancada no banheiro, até que decidiu. Ninguém nunca ficou sabendo que ela empurrou aquela ruiva de merda do terceiro andar. E a garota nem morreu, nem morreu. Foi merecido, Ana Maria tinha certeza. Porque aquela ruivinha de merda tinha tudo o que queria, todos os presentes, todos os garotos, todo o dinheiro, as viagens, tudo isso que Ana Maria não tinha porque era feia e sem sal e porque o pai, aquele burro babaca, estava afundado em dívidas. Nem tinha podido pagar a festa de quinze anos (e ele prometeu, aquele escroto prometeu!). A ruivinha idiota tinha tudo e sabia que tinha tudo. E sabia que Ana Maria tinha cada vez menos e fazia piada disso. Babaca, imbecil, filha de uma puta. Ela tinha que aprender que... que... Mereceu, ela mereceu. Ela tinha que aprender que... que... que... Ana Maria passou mais seis meses chorando em cima da privada até ouvir o disparo.

.

Primeiro, ela aprendeu a beber. Depois ela fumou um cigarro. Um por semana, um por dia, um maço por dia, dois, três. E veio a maconha. Era fácil, ela já conhecia quem vendia. Desde os sete anos. Era só roubar uma grana, e isso há muitos anos ela já fazia. Era fácil. E, enquanto isso, ela fugia do sinal, onde vendia amendoim, e ia pro museu, ali do lado. E ficou conhecendo uns nomes aí e depois pesquisou um pouco mais e ficou conhecendo mais nomes aí e foi gostando. E talvez tenha sido o álcool ou a nicotina ou a maconha. Ou só talento, se ele não é motivado por alguma força maior. E ela começou a pintar. Foi por isso que Mariana entrou pra faculdade. Começou a vender pinturas idiotas na rua, ganhou um dinheiro, pouco e suficiente. E mandou a madre do orfanato à merda com um beijo cínico e um safanão. Só depois veio a cocaína.

.

Aquela puta deu um tiro na cabeça. Sacou? Um tiro na cabeça! (gole de vodka). Nunca me deu a porra de um abraço, aquela puta! (crise de histeria). Puta! Puta! Puta! Vaca, galinha, desgraçada de merda! Acabou o dinheiro, ela deu um tiro na cabeça. Vadia do caralho! Puta! Vagabunda! Puta! (joga o copo na parede, ele não quebra. Chora muito, talvez por isso). Meu Deus! (vai decaindo até sentar no chão, a maquiagem borrada, o vestido rasgado no meio de uma bad trip nem sabe mais de quê. Soluça, soluça, soluça). Que que vai ser da porra da minha vida, cara? Eu não tenho mais nada, cara... (põe a cabeça no meio dos joelhos, vai se deitando assim, alongamento de bailarina, até encostar a cabeça no chão e esticar as pernas. Lembra de quando ia pra escola de balé na infância). Eu fui muito rica, muito rica. Até ela dar um tiro na cabeça. Ela me levava pra fazer balé, a minha mãe. A gente tinha muita grana, you know? Meu pai gastou tudo (a língua enrola, ela vai virando de lado, vai parando de chorar). Meu Deus! Cara, eu tô na merda, cara... (ele pega Ana Maria pelo braço roxo das porradas de ontem. Leva Ana Maria pra cama. Ela dorme no meio da transa. Ele deixa um dinheiro e sai com a calça desabotoada. Não vai voltar).

.

A casa era de um mau gosto extremo. Mas todo mundo elogiava. As mulheres de cabelos curtos e sobretudo. Os homens de barba cerrada e cabelo bagunçado. Todo mundo de óculos de aro grosso cor escura, quase sempre sem grau, que tudo ali era pose. Alguma peça xadrez na indumentária, um tênis all star sujo ou botas brilhantes. Bolsas com botões de astros do rock setenta, Beatles, Chico Buarque, Mutantes, Caetano e jazz no som. Quadros horrendos de nomes grandes com talento nenhum, mantas jogadas nas costas dos sofás e das cadeiras. Vinho branco e espumante, caviar com torrada pra canapé. No primeiro quarto do corredor, carreiras de cocaína. Na sala, a marola de maconha. Diziam que no banheiro do andar de cima tinha ópio, mas ela não foi conferir. Mariana gostou do primeiro quarto do corredor. Ninguém precisava saber de onde ela tinha vindo nem que ela já tinha rebolado em baile funk, vendido bala no sinal, assaltado turista de noite nos lados da Lapa. E ela não ligava pros sorrisos de propaganda de pasta de dente daquela gente mesquinha. Ela queria mais era fazer a social e cheirar cocaína. Queria mais era usar todo mundo ali. Que quanto mais ela mergulhasse naquele mundinho de classe média alta cheia de si, sorrisse e bancasse a pessoa maneira-tão-elegante-e-culta, mais e mais ela ia ganhar status, ficar conhecida e ter um nome na rodinha cultural de cartas marcadas. É assim que funciona. Ela sabia. Ainda deve saber.

.

Quando saiu do hospital, Ana Maria viu um sol forte demais. Ficou enjoada, vomitou na calçada, não tinha mais casa, não tinha mais nada. Desmaiou.

Quando acordou no hospital, Ana Maria sentia um frio forte demais. Tinha febre forte demais. Começou a tremer. Começou a chorar. Começou a se debater. Vieram os enfermeiros fortes demais, aqueles do dia anterior, que apertaram forte demais o braço machucado demais da Ana Maria. E eles apertaram forte demais o braço mais machucado demais ainda da Ana Maria. Ela não teve força pra gritar de dor. Sentiu a agulha ir fundo no braço. E não teve força pra gritar de dor. Desmaiou de dor. Ou foi o anestésico.

(Silêncio escuro. Depois, luz.)

– Quantos comprimidos você tomou (ele olha a prancheta e remexe os papéis), hum..., Ana Maria...?

– Dezesseis (voz fraca).

– E quanto de álcool?

– Duas caixas...

– Porra, nenhum fígado resiste!

No dia seguinte ela ia ter alta. Nem conseguiu dormir à noite. Ali pelo menos tinha cama, coberta, comida. Lá fora estava chovendo, ela não tinha pra onde ir, não tinha o que comer, não tinha mais porra nenhuma nessa vida. Nem a sorte de conseguir se matar. Nem se matar ela tinha conseguido nessa vida.

Pelo menos o bebê tinha morrido envenenado.

.

Parou no sinal. Odiava aquela porra de sinal. Sempre procurava avançar, parar longe da faixa de pedestres ou, em último caso, nem passar por ali. Mas estava com pressa, aquele era o caminho mais curto, não tinha dado pra avançar e o sinal tinha fechado logo que o carro encostou na linha branca da faixa. Então eles vieram. Dá um trocadinho é o caralho (ela pensava), e sacudia a cabeça dizendo que não, que não, que não tinha (mentira) e eles jogavam água suja no vidro, melecavam o vidro, e ainda cobravam um trocadinho (é o caralho!, ela pensava com o sorriso cínico no rosto, vontade de dar neles um safanão). O sinal abriu. Alívio. Três minutos eternos de uma tortura sem igual. Apertou o acelerador do Honda quase até o fundo antes de soltar o freio. Gostava de ouvir o carro cantando pneu. E antes de arrancar, Mariana pôde ver a velha, sentada no meio fio, o braço manchado de cicatrizes antigas, os traços finos e os cabelos pretos, lisos (inveja, que a mendiga tinha cabelo melhor, até a porra da mendiga tinha um cabelo melhor! Mas ia continuar penteando o pixaim pra cima e se assumindo, que tudo ali era pose). Por um momento, o olhar pobre da velha cruzou o olhar rico da Mariana. Depois, o City arrancou voado cantando pneu. Mariana desejou um cigarro mentolado e uma carreira de cocaína. Sorriu lembrando: tinha ainda alguma coisa do último sarau guardada no ateliê. Já estava perto de lá. Logo o Honda subiria Santa Teresa.

.

Mas é que o desejo é burro, o corpo é burro, e o instinto infeliz de preservação faz de qualquer ser que viva um bicho burro. Que luta pra continuar, mesmo quando não tem por quê. Ana Maria começou a mendigar, conseguiu comprar alguma comida por uns dias. Depois se prostituiu de novo, que disso ela entendia bem. Era bonita ainda. Ainda tinha uns traços finos, uns cabelos pretos, longos, lisos, um corpo magro (não comia, afinal). E turista não se importa com cicatriz e hematoma das surras que ela já tinha levado. Eles queriam uma xota, não uma modelo internacional na cama. Eles nem queriam os traços, os cabelos, o corpo. Só um lugar onde enfiar o pau. Os clientes? Apareceram. E as outras putas, que brigavam pelos sinais da zona sul também. Bateram na Ana Maria, deixaram algumas marcas. E daí? Ela roubou a arma de um polícia que tinha dormido com ela, atirou em duas desafetas e nunca mais ninguém incomodou. Alugou um apartamentinho num bairro pobre, sem nada, só pra ter um teto. E ainda tentou se matar mais três ou quatro vezes. Mas não adiantou. Até que.

De noite, um choro acordou a Ana Maria na quitinete úmida de subúrbio onde ela tinha ido parar. Vestiu um pano qualquer, desceu as escadas. E procurou, procurou, procurou. Até achar o bebê jogado no lixo, enrolado num saco preto, sem mais nada, mais nada. Tentou chorar pelo desgraçado sem futuro que ela tinha achado ali. Mas não conseguiu. Nem morrer nem chorar ela conseguia. Deixou o bebê na porta de um abrigo qualquer, que aquilo não era problema seu. Nem se preocupou de ver o sexo, que aquilo não era problema seu. Voltou pra casa, subiu as escadas e voltou a dormir.

Seja o primeiro a comentar: