quinta-feira, 12 de abril de 2012

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Pequenas histórias - Sagitta.









Sagitta


Ouvia. Ouvia sim, a música diluída na distância até ao ponto que seu ouvido conseguia alcançar. Era uma música conhecida, apesar de seu ritmo violento, rápido, precisava apurar os ouvidos para distinguir as palavras. E o que elas lhe diziam? Momentaneamente nada. E como poderia dizer alguma coisa se ele nem sabia o do porque estava naquela situação. O que estava fazendo naquele morro que ora lhe parecia um amplo espaço aberto, em outros momentos, dava a sensação de estar numa gruta onde a luz difusa mal iluminava o caminho. Tentava caminhar, tateava apalpando a parede úmida e gosmenta e fria. Sua respiração subia, tinha a nítida noção que estava passando por aquilo para salvar a vida. Se livrar da escravidão. Mas qual escravidão? Da vida? Da materialização da vida e seus vícios?
Quando se sentia no morro onde seus olhos cerrados pela violenta luz, o medo lhe dominava, paralisavam os movimentos até que uma sensação estranha lançava-o a um combate entre a paz e a dor. Nesses momentos conseguia tocar na paz com as pontas dos dedos acreditando em vencer o que lhe afligia sem saber exatamente o que. E era nesses instantes que surgia o sinal no amplo céu iluminado pelo sol forte. Uma sombra cobria seu corpo suado e violentado pela luta, dando-lhe uma pequena força para continuar. A princípio pensou ser um sinal, depois distinguiu um pássaro, quando chegou mais perto foi que reconheceu uma águia que adquiria forma de flecha ou seta se materializando em seu interior. Captava essa materialização como chama queimando-o ao mesmo tempo em que a mente se abria guiando-o paralelamente as correntezas do rio da vida.
E o poder da sua carne tornava-se rígida, um pouco cansada, mas não frágil, pois sabia que, como ele, seus inimigos se encontravam paralisados ignorando o rumo que deveriam tomar. Ele tinha um rumo, talvez até soubesse qual era, mas envolvido por uma névoa que não o deixava ver claramente, e nem podia, pois se soubesse não haveria significado nenhum em percorrer.
A todo o momento se perguntava:
- Conseguirei completar todo o meu caminho?
Era a pergunta mais freqüente em que procurava acreditar e, Ingênuo, acreditava. Acreditava porque todo o dia abria os olhos e contemplava o azul escuro sem estrelas do teto do quarto. Não via nisso um milagre. Não acreditava em milagre. E porque deveria? Só porque estava no planeta Terra e o planeta Terra entre constelações e nebulosas? Só porque os mistérios existem e precisam ser revelados? Ou quem sabe, decifrados? Tudo isso e muito mais, disse reconhecendo o trabalho árduo que tinha à frente.
Tinha uma arma. O grito. O grito mudo saindo da garganta ganhando a vastidão do vazio seco como deserto. Usava o grito, nem sempre positivamente. Isto é, seu grito apesar de amplo e vasto, se convertia de positivo a negativo. Quer dizer, era interpretado dessa maneira. Mesmo assim, não deixava de gritar toda vez que achava que deveria. Reconhecia. O grito saia às vezes, fraco, seco, sem eco, outras vezes, sonoro não alcançava o objetivo. Por isso, do seu canto fitava o vazio das pessoas estudando cada gesto, cada movimento, cada frase, para depois codificar em seu intimo o significado. Nem sempre justificável. Por isso, agia incrédulo diante da face egocêntrica povoando seu caminho. Desviava dessas faces como desviava da futilidade onde, no livre arbítrio, cada um achava seu canto mórfico e ali se aquietava.
Não poderia se aquietar tinha uma missão a cumprir. Seguir a flecha lançada no espaço da existência em que ele pisava com cuidado. A flecha seguia seu curso predestinado, e seguindo-a corria perigo, durante o caminho se desvirtuar e cair no anonimato de um sentir fútil, levando-o a despencar no abismo de sentir ele mesmo queimando no fogo das palavras.
Ah! Sorrio intimamente, conseguirei, sim, disse para si mesmo.
Sim conseguirei, disse a si mim mesmo, não me preocupo com o significado da palavra, sei que conseguirei, e, no entanto, surge, enovelando tudo com a fragrância do desprezo, a indolência dos mortos vivos, como sentimento de tristeza ao estampar a negatividade. Não sabia trabalhar os sentimentos, desconhecia o processo, não lhe ensinaram a burilar o negativismo, não lhe ensinaram nada, muito menos viver e, viver era difícil!
Lábios finos, devastador, sensual, nunca apresentou uma pequena fresta de alegria, seus lábios não se abriam para um largo e franco sorriso. Quando lhe perguntavam por que não sorria, sua resposta era:
- Cristo nunca sorriu, porque devo sorrir.
As pessoas não lhe diziam nada, uma ou outra fazia menção, pois o gesto estacionava no ar das rugas. Ele percebia e se calava.
A chuva caia torrencialmente. Se não fosse a chuva já teria deixado o Solar dourado. Não poderia esperar muito. Depois da flecha lançada não tinha como voltar atrás. Obrigado estava a seguir o curso do destino. A seguir o rastro da flecha.
Tinha conhecimento de Sagitta. Sabia da sua existência, não conhecia sua importância no universo sonoro e no sistema cósmico. Podia prever o que lhe representava. Havia uma pequena, talvez noção do que representaria a ele, ser não místico, que vivia apenas para preencher o dia-a-dia da sua existência.
Portanto, quando foi apresentado a Sagitta, previu um estremecimento interno de que em Sagitta estaria a luz que tanto vinha procurando. Tomou ao pé da letra tal apresentação, no entanto, dias depois, notou que precisaria percorrer um caminho sombrio, com pouca luz. Procurou conhecimentos maiores sobre o assunto, indagou aqui e ali, consultou os caminhos informáticos, os caminhos das constelações, do universo, das estrelas, da lua, do cosmo e, não encontrou nada, quer dizer, o que encontrou nada lhe dizia da grandeza de Sagitta. As informações não levavam a lugar nenhum.
Assim sendo, se acomodou no canto da alma se aquecendo no conhecimento até então, adquirido.
E ao se acomodar no canto da alma, não só se aqueceu como o conhecimento adquirido, tomou outra consistência não prevista por ele. E, viu-se pronto a enfrentar a raposa, mesmo não sendo lutador, sentiu a necessidade em enfrentar tal perigo. A águia num vôo rasante arrancou-lhe do pescoço a corrente com o pingente em forma de S. Desesperado, sem pensar, retesou o arco e lançou a flecha atingindo em pleno vôo a águia. Nisso, surge do nada a raposa faminta.
Não demonstrou medo, sabia, a raposa tinha fome de carne animal e, não, de carne humana. Sabia, ela estava ali para afrontá-lo num duelo, não um duelo de vida e morte, mas num duelo de rapidez, de agilidade.
Assim, ao notar a presença do animal, sem pensar, saiu correndo, impondo velocidade aos pés. Lado a lado estavam na trilha do destino. Algo lhe dizia ser vencedor antes mesmo de chegar ao local onde estava o corpo da águia. Confiante, conhecia seu potencial assim como o potencial da raposa. Mesmo que ela estivesse alguns segundos a sua frente, via que não havia necessidade de impor mais velocidade. Foi então que teve conhecimento de algo que já sabia e, que naquele momento, devido à preocupação em vencer a raposa, tornava-se obscurecido. A flecha por ele lançada, situava-se entre as constelações de Hércules e Delfin, seguida da águia e raposa.
Compreendeu nada o venceria, só não podia fazer corpo mole, tinha que demonstrar competência para lutar, competência de ser vencedor e, assim ele fez, competiu com a raposa. Até o último instante, sempre com a raposa a sua frente. Na volta final, imprimiu aos pés a força da seta, recuperando com galhardia a corrente com pingente em forma de S. Suspirando com alegria, gritou venturoso:
- Sagitta você não morrerá nunca. A prova esta aqui na minha mão. Tua força emanará melodiosos acordes elevando-nos ao total conhecimento cósmico.
Ajoelhou no chão áspero e alçou o pensamento a constelação visível em seu peito. E adormeceu sossegado.
Sossegado adormeceu. E sonhou. Sonhou calmo, suave, terno, perigoso, angustiado. Flanava no meio da constelação, esbarrava nas estrelas, empurrava uma para lá, outra para cá. O silencio aterrador comandava os gestos. Tinha conseguido. Quando menos esperava conseguira. Era sempre assim. Conseguira. Sim, estava fazendo sua primeira viagem astral. Ou não estava? E o que era aquilo? Sonho? Muito real. De onde estava via seu corpo estendido na cama do quarto. Não só o seu corpo como tudo o que queria ver. Poderia ver sua vida, desde ao nascer até agora. Ver todos os instantes da sua vida, seus erros, seus pecados, tudo. Sim, poderia. Mas, não era isso o que queria. Ainda não estava a beira da morte. E para que relembrar o que já foi? Queria apenas flanar por entre as tênues nuvens dos amigos, amantes, parentes, e se pudesse, dizer-lhes:
- Olhe! Sei que não fui o que vocês imaginavam, sei, muitas coisas erradas fiz, mas fiz com a intenção de conseguir a felicidade e, alcançando a felicidade conseguiria fazer vocês felizes. Se não consegui, me perdoem.
Era o que queria dizer. No entanto sua voz soava muda, não alcançava o destino, não propagava no espaço. Gritava:
- Amo todos vocês.
Ninguém ouvia seu grito. Se ouvissem não tinha como saber, portanto se angustiava. Nisso percebeu algo esquisito. Percebeu, não tinha como sentir, era apenas um tênue flamejar de vida. Ouviu no silêncio do ouvido um passar relâmpago incandescente. Olhou em volta e nada viu. Soou ao longe um tropel de passos em desabalada corrida. De repente estava rodeado de ciclopes que corriam apavorados. Por que corriam? Com medo do que? Não teve tempo em assimilar a resposta. Passou por ele uma enorme flecha em fogo que atingiu um ciclope perto dele. O coitado caiu inerte no chão.
Nesse momento percebeu, ele era um ciclope, tinha que correr. Viu a flecha flamejante lançada por Apolo em sua direção. Imprimiu velocidade aos pés. Dava a impressão de estarem amarrados a uma bola de chumbo. Tinha dificuldade em erguer os pés. Com dificuldade, numa lentidão horrorosa fazia o máximo para fugir. Se ao menos alcançasse a esquina...
Nisso a flecha perfurou a carne. Uma queimação tomou conta de todo o corpo. Numa lentidão a carne foi estraçalhada atingindo os ossos. Parecia uma guitarra sendo solada num extremo infinito. Caiu. Melhor. Aos pedaços seu corpo despencou em direção a ele que estava dormindo. Preocupou-se com o baque e como conseguiria juntar os pedaços dilacerados pela flecha. Seus olhos úmidos de terror pressentiam o momento exato do encontro dele com ele mesmo. O momento...
Acordou sobressaltado. Empapado de suor, sentou na cama. Procurou no escuro distinguir onde estava. Acendeu a luz. Respirou com folga. Sonhara. Fora um sonho tão real a ponto de sentir dores pelo corpo todo. Compreendeu. Sua busca chegava ao término. Compreendia claramente. Sagitta estava nele assim como ele estava em Sagitta.
Isto é, seu destino era não poder nunca se livrar de Sagitta. Estava preso assim como estava preso ao destino infinito das sensações.


pastorelli

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