sexta-feira, 4 de maio de 2012

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LIBERDADE


Amanhece, e essa avalanche de azul invade o quarto.
Como um mini-exército de criaturinhas celestes, forçando a abertura das minhas sonolentas pálpebras, a manhã me acorda sorridente, bagunceira, espaçosa, e nada me resta, senão devolver-lhe o “bom dia”.
Custo um pouco a levantar, nessa preguiça empenada, que me impede de correr para a varanda e alcançar os beija-flores.
Com um pé de chinelo e o outro descalço (com crianças em casa, nunca se acha o outro pé), afasto as cortinas e percebo o despertar de mais um dia.

Deixo-me embriagar pelos sentidos: sinto o cheiro da manhã, aquela sensação de flor e café quentinho; vejo o movimento sorrateiro dos vizinhos, provavelmente com a mesma moleza das manhãs de outono; noto o calor dos primeiros raios de sol, e permito-me envolver por inteiro; converso com as plantas e os passarinhos, que me encaram com seus bicos úmidos de flores, atrevidos colibris, pairando no ar e me desafiando a voar; tenho o gosto da alegria a escorrer pelos cantos da boca, nesse riso rasgado que não me contém.
Espreguiço ou, como preferem alguns, me alongo toda, me espicho, me estalo, cada junta parece feliz e elástica.
Tenho vontade de dançar. Há música em meus ouvidos, talvez no coração.
Há vida. Estou viva, pronta para mais um dia.
Debruço um pouquinho e quase quero me jogar na suave brisa de junho.
Namoro crianças risonhas em seus carrinhos na calçada (elas me entendem, cúmplices).
Tento alcançar o fim do céu a olho nu e, nesse instante, mergulho no infinito. E sou livre.

Não há sensação melhor no mundo que a liberdade.
Sou livre para pensar, para querer, para sentir. Não há o que me proíba de ser.

E olho minhas mãos. O quão livres são minhas mãos?
Essas mãos que já pediram colo, que já passearam pelo rosto e cabelos de minha mãe. Que já se cruzaram nas costas, escondendo as artes do papai, e que também o vestiram e cruzaram as suas, em seu derradeiro adeus. Essas mãos que já amaram, que já procuraram os caminhos do prazer, que já se deram a outras mãos, em comunhão. Que já ampararam, acariciaram, cuidaram e deram segurança a cada filho, e que também os soltaram, para que aprendessem seus próprios caminhos e acreditassem em suas próprias mãos. Essas mãos que já curaram, confortaram e fecharam as pálpebras de tantos pacientes. Essas que já escreveram os mais belos poemas e as mais amargas cartas de solidão. Essas que ainda procuram e procuram e procuram, porque são livres para procurar.

Sim, não há nada que substitua a liberdade.
Pode-se perder uma parte do corpo, um grande amor, a família, o emprego, o sucesso, o trem. A tudo se supera, se adapta. Mas não se pode perder a liberdade, pois é através dela que se entende a vida, que se pode ter esperança de que, um dia, se possa ser realmente livre.

Há os que não compreendem a liberdade, que acreditam que ela é uma opção. Tolos! A liberdade é o único bem que já nasce conosco, sem nenhum tipo de taxa ou dízimo. Inúmeros políticos, ditadores, líderes religiosos e legisladores tentaram cercear a liberdade, mas não conseguiram: ela está em nossa mente.
O homem é livre, por natureza, e qualquer clausura, até aquela que se mascara de amor, de proteção, de ciúme, é daninha, é perversa e cruel.

Nada no mundo vale a liberdade. Nada!

Volto da viagem ao infinito do céu, esbarrando naquela nuvem em formato de travesseiro, e deixo-me descansar, fitando as mãos. Percebo uma pelinha ali no cantinho da unha, e lembro-me da hora na manicure. E ainda tenho que comprar o pão, esquentar o leite, fazer o café e cortar o mamão.


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