O ANJO
3.
O corpo esguio de Ariane ventilava, na tez
muito branca, a morna brisa do Sol. Deixava-se escorrer de uma água muito
límpida, advinda de fonte de ouro e mármore, em filetes de azuis e verdes muito
amigáveis. Ângelo espreitava-a, um pouco guloso, sereno daquelas curvas de
breves e macios. A moça, lentamente, se adaptava, ainda um pouco temerosa da
amplitude do astro.
- Agora
já me parece mais alto... a princípio temia toca-lo quando amanhecia. Ainda não
sei muito bem onde estou, Ângelo.
- No
reino das Aves, dos espíritos livres, esclarecidos de si.
- Pouco
me esclareceu – e ela às vezes enfadava-se dele. Tão auto-suficiente, aqueles
requebros de orgulho... porém, era belo e, se insolente, era íntegro.
- Sabe,
Ângelo, - ela dizia-lhe depois, na primeira refeição, - talvez eu pareça muito
simples, até um pouco rústica.
- E não é
?
- Sou. E
você ?
-Sou
elevado da civilização, não da que se compete em máquinas e aço
- da que
se ergue na Arte e na Cultura, na beleza
- que
advinda da natureza se complementa no molde das mãos do homem, aquele que
ciente de si, esclarece o deus.
-Tantas
vertigens e apreensões,vivemos na ciência da multiplicidade, quase esquecidos
da forma da matriz.
- É
verdade, podemos nos organizar em facções, modalidades, excentricidades. Isso é
liberdade.
- Mas, e
o deus ?
- Tem
múltiplas faces como nós. É único quando se enfeita e fortalece o Astro e você pode
compreendê-lo batido e abstrato no horizonte, quase aço.
- E...
- A
força, a água e a espiritualidade, porém, são múltiplas e dançantes, às vezes
pueris, porque não sensuais, evadidas dos tambores e das massas... um acorde de
formas e vibrações que se encerram no fato, desfazendo-o , quando se justifica,
até a aniquilação, visto que a energia se entrega ao solo e depois se reduz,
novamente namorando o Cosmo.
- E assim
como esse lugar podemos, ao aproximarmo-nos da fonte, esquecer o peso de nossos
corpos.
- É... é
uma integração – ele deu de ombros. O que imaginava ? – e a covinha do cinismo
espreitava os olhos vítreos da amiga. Um religioso e monástico caminho em
direção à unicidade?
- É
que...
- Quer a
si – e o efebo balançava a cabeça. Primeiro aqueça o meio.
-
Aproximando-me do orgulho e poder da Matriz. Tão infinito e enervante...
- Os
climas frios ensinaram os homens e mulheres do passado os intrincados das
idéias e dos afazeres. Ficou uma mancha de água e dor na alma, nesses apegos
aos retiros e às florestas.
- Não as
aprecia?
-Também,
quando quero sorver vinhos de corpo menos elástico. Preciso muito pouco de
recolher-me.
- Muitos
homens do povo são assim.
- Não são
degenerados como os sábios edificadores dos sistemas castradores.
- Sinto
certa dificuldade em responder-lhe.E também em apreciar o pão.
-
Causo-lhe alguma indigestão? Não compartilho teu orgulho da própria
sensibilidade, é bom que o saiba. Não a vejo como fortaleza da delicadeza.
- Sou uma
mulher de asas e caminhadas, respirei muitos rios e toneladas de ares nos mares
da vida.
- Mas
teme a amplidão do esclarecimento, o compasso do peito nas fatias infinitas do
néctar da vida. Ela, a vida, é assim como a vê, generosa, evidente, aspirada e
langorosa, insolvente, vidente de desejos e armações. Não se preza nos tão
honestos...
- Mas
você chamou-me Ariane.
- Honesta
virgem de vácuos e vítreos nas sombras dos olhos, funesta nos labirintos da
mente inquieta.
- Mas se
pensava que meu nome evocasse o Sol e seus passos de atleta.
- E o meu
as orações da Lua e suas vírgulas de inquieta.
- E não?
- E não.
- E então?
- Nas
origens e seus primatas, talvez. Mas a rudeza do ritmo impos outras marcas.
-
Escaparam-se uns...
-
Afeminados? Me vê assim? Sou daqueles que se deleitam nas luzes abertas. E no
leito as mulheres – e tocou-a de forma a não deixar dúvidas.
- Sei. O
reino solar é o da luxúria e da natureza.
- Como é
natural.
- E
Ariane ?
- Saída
da curva do Astro, rendida ao abstrato.
- Pois o
verbo solar foi erguido por machos a partir das turvas esquisitices,
estroinices dos esquizofrênicos ritos.
- Para
vazar e recomeçar nas fronteiras, inadiáveis, da Culpa, edificaram-se os
edifícios do concreto.
- Era
necessário o toque de recolher.
- E
depois de um longo estio levanta-se o Cálice e cobre-se de águas mornas e
valentes o destino.
- Talvez
te chame de Mestre.
- Prefiro
ser o Anjo, o insólito, o liberto, aquele que seduz, ligeiro e molhado na
simplicidade do prazer.
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