O ANJO
4.
E
seguiram-se os dias envoltos em um azul de açúcar e gelo, anil de reticências,
quase solene na lenta magia das extensas tardes. O clima, um pouco mais frio,
dava o mesmo compasso à indiferença dos dois, já que cada qual seguia suas
atitudes e tarefas. Ariane riscando projetos inspirados no marcante compasso
daquela natureza, menos amedrontada com o caldo verde do Astro. Ângelo esfriara
a ardência dos grandes olhos e escondia as covinhas. Evitava olhar para Ariane
e fazia seus esboços com vagar. Depois os tingia de muitas aquarelas, aonde vermelhos e laranjas pareciam querer
ditar um império.
- É belo,
mas insolvente – ela deu de ombros. Estamos muito isolados. Nem pássaros, nem
duendes... e você me jura esse lugar como encantado. Posso ouvir com nitidez os
poucos seres que habitam o oceano. Quase nunca se atrevem a chegar até a areia.
- Hum,
hum..
- Em que
está pensando?
Ele fuzilou-a com o jato dos olhos. Não é
mesmo simpático, ela considerou.
- No
mesmo que você. No tédio, no frio, no isolamento, na paz. Nas ondas pouco
perturbadas desse mar, no arrojo da unidade do céu nos dias de muita luz, no
sorriso das noites descobertas. É o que temos.
- E a nós dois.
- É
verdade – e ela percebeu um gracioso esgar da covinha. Já me aceitou?
- Não
aceito nem a mim...
- Eu sei.
- Nem ao
ritmo indolor e seco de meus dias, concisos planos de metrificação e espanto.
- Não é
feliz...
- Não
sei. Espanto-me da vida, do ser, da angústia, da tranqüilidade e da violência,
da beleza e da mediocridade, do sussurro – incansável – do deus e da pertinaz
pertinência da besta, do Universo miserável e soberbo que não sossega e
rebenta-se em estrelas e super-novas e orienta-se, nesse planeta, em seres,
florestas e mares.
Ele agora a olhava com curiosidade.
- E ...
- Por que
devemos ser espirituais, levitados, harmônicos e quase sonsos de sossego e
bonomia?
- Devemos?
- É o
remédio ao que parece.
-
Prefiro-me alerta.
- Mas não
pensas...
- Nas
colocações de tuas idéias? Sim, sim, tem pertinência. São solúveis, mas também insolventes,
crespas, enrodilhadas no desprezo ao próprio sossego. Temes, Ariane, temes em demasia,
a morte e a sombra, a surpresa e o assalto, a evidência das incertezas, das
impurezas... temes, Ariane, é o que acontece.
- Eu sei,
Ângelo, eu sei. Às vezes quero chorar, gritar, sair correndo nas noites muito
escuras, enfiar-me nas mesas em que as taças se levantam e juntar-me às bailarinas
em seus ritmos e risadas, mas... Ângelo ! em mim habita uma consciência tão
alerta e vidente, nunca calada. O que me
falta e no que me excedo? Por que você é diferente?
- Nem
sempre. Sou mais ciente, vivo no meio e no seio da grande vida, nela me
alimento. Não deixo que o cérebro se exceda sem apoiar-me na ribanceira do dia
ou noite que o aguarda.
-
Falta-me um pouco de vida.
- De
esquecimento, de ritmo de solvência e tolerância.
- Estou
doente, Ângelo, adoeço do medo e da mente, isso que não descansa e arma suas
armas.
- É
infinita a vida em sua violência e em sua paz. Aceite-a, aprenda a murá-la de
flores e pão. Construa, encante-se da alegria dos pequenos seres.
- Antes o
fazia.
- Pois
retome os pequenos afazeres, acompanhe as magias e os acasos de cada dia, sem
preocupar-se com o que segue.
- E sem
medo.
- Sim,
Ariane. Esqueça de si, apenas acompanhe o cortejo, ainda que nessa esplêndida
solidão.
-
Pode-se, ao menos, ouvir o mar.
-
Enamore-se da areia, nela se esfregue com prazer e gratidão.
- E
cacarejam as estrelas...
- Esses
sinais transmitem os códigos de imagens carregadas de vácuo e eternidade. Todas
brincam e se aquecem e lutam e... esquecem. Esqueça, Ariane, e sorva o vinho,
doce ou seco, da existência.
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