quarta-feira, 30 de maio de 2012

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O ANJO 4 --JANDIRA ZANCHI


O ANJO

4.


      E seguiram-se os dias envoltos em um azul de açúcar e gelo, anil de reticências, quase solene na lenta magia das extensas tardes. O clima, um pouco mais frio, dava o mesmo compasso à indiferença dos dois, já que cada qual seguia suas atitudes e tarefas. Ariane riscando projetos inspirados no marcante compasso daquela natureza, menos amedrontada com o caldo verde do Astro. Ângelo esfriara a ardência dos grandes olhos e escondia as covinhas. Evitava olhar para Ariane e fazia seus esboços com vagar. Depois os tingia de muitas aquarelas,  aonde vermelhos e laranjas pareciam querer ditar um império.
- É belo, mas insolvente – ela deu de ombros. Estamos muito isolados. Nem pássaros, nem duendes... e você me jura esse lugar como encantado. Posso ouvir com nitidez os poucos seres que habitam o oceano. Quase nunca se atrevem a chegar até a areia.
- Hum, hum..
- Em que está pensando?
     Ele fuzilou-a com o jato dos olhos. Não é mesmo simpático, ela considerou.
- No mesmo que você. No tédio, no frio, no isolamento, na paz. Nas ondas pouco perturbadas desse mar, no arrojo da unidade do céu nos dias de muita luz, no sorriso das noites descobertas. É o que temos.
- E a nós dois.
- É verdade – e ela percebeu um gracioso esgar da covinha. Já me aceitou?
- Não aceito nem a mim...
- Eu sei.
- Nem ao ritmo indolor e seco de meus dias, concisos planos de metrificação e espanto.
- Não é feliz...
- Não sei. Espanto-me da vida, do ser, da angústia, da tranqüilidade e da violência, da beleza e da mediocridade, do sussurro – incansável – do deus e da pertinaz pertinência da besta, do Universo miserável e soberbo que não sossega e rebenta-se em estrelas e super-novas e orienta-se, nesse planeta, em seres, florestas e mares.
Ele agora a olhava com curiosidade.
- E ...
- Por que devemos ser espirituais, levitados, harmônicos e quase sonsos de sossego e bonomia?
- Devemos?
- É o remédio ao que parece.
- Prefiro-me alerta.
- Mas não pensas...
- Nas colocações de tuas idéias? Sim, sim, tem pertinência.  São solúveis, mas também insolventes, crespas, enrodilhadas no desprezo ao próprio sossego. Temes, Ariane, temes em demasia, a morte e a sombra, a surpresa e o assalto, a evidência das incertezas, das impurezas... temes, Ariane, é o que acontece.
- Eu sei, Ângelo, eu sei. Às vezes quero chorar, gritar, sair correndo nas noites muito escuras, enfiar-me nas mesas em que as taças se levantam e juntar-me às bailarinas em seus ritmos e risadas, mas... Ângelo ! em mim habita uma consciência tão alerta e vidente, nunca calada.  O que me falta e no que me excedo? Por que você é diferente?
- Nem sempre. Sou mais ciente, vivo no meio e no seio da grande vida, nela me alimento. Não deixo que o cérebro se exceda sem apoiar-me na ribanceira do dia ou noite que o aguarda.
- Falta-me um pouco de vida.
- De esquecimento, de ritmo de solvência e tolerância.
- Estou doente, Ângelo, adoeço do medo e da mente, isso que não descansa e arma suas armas.
- É infinita a vida em sua violência e em sua paz. Aceite-a, aprenda a murá-la de flores e pão. Construa, encante-se da alegria dos pequenos seres.
- Antes o fazia.
- Pois retome os pequenos afazeres, acompanhe as magias e os acasos de cada dia, sem preocupar-se com o que segue.
- E sem medo.
- Sim, Ariane. Esqueça de si, apenas acompanhe o cortejo, ainda que nessa esplêndida solidão.
- Pode-se, ao menos, ouvir o mar.
- Enamore-se da areia, nela se esfregue com prazer e gratidão.
- E cacarejam as estrelas...
- Esses sinais transmitem os códigos de imagens carregadas de vácuo e eternidade. Todas brincam e se aquecem e lutam e... esquecem. Esqueça, Ariane, e sorva o vinho, doce ou seco, da existência.


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