Luciana Saddi, psicanalista e
colunista da Folha, apresenta vinte e sete contos em seu segundo livro, lançado
pela Editora Jaboticaba – SP, no ano de 2010.
Conto é uma narrativa concisa,
falada ou escrita. Ao longo dos vinte e sete textos – os quais compõem este
livro – algumas personagens idealizadas pela escritora são apresentadas em
narrativas que, em linguagem simples e contagiante, discorrem sobre ampla gama de
sentimentos, de relacionamentos, de reflexões e do sexo característicos do
humano contemporâneo.
Impossível não se identificar com
estas narrativas e suas personagens, visto se tratarem de temas intrínsecos aos
nossos próprios anseios e demandas. Os contos, entretanto, apesar da linguagem
direta, estão longe de tangenciarem as questões do humano pela via do comum ou
pela seara da auto-ajuda. São, antes, narrativas impregnadas de forte carga
emocional: aquelas que falam diretamente aos sentidos e levam à reflexão.
E é tarefa das mais difíceis
descrever numa resenha as particularidades deste conjunto de textos revestidos
de simplicidade e simultaneamente capazes de impingir intensa impressão. Optei,
então, pela citação de alguns excertos selecionados a partir de leitura atenta:
creio que os trechos seguintes são representativos da obra e falam por si.
Dores: Fernanda. “Ser mulher é
piada de mau gosto, os peitos crescem não se sabem vindo de onde, talvez do
mesmo planeta daquela gente estranha. Detalhe: depois caem. A menstruação, nem
se fala, quem inventou tal absurdo? Sangue era uma coisa para ficar dentro das
veias. E o tal exame ginecológico, te enfiam um negócio metálico, gelado,
vagina adentro, e raspam. O pior é a sonhada maternidade, o parto normal tão em
voga ultimamente. As dores, as contrações, a cólica, se um alien te
arrebentasse a barriga por dentro, você daria risada? Os médicos, uns encantos
de homens, certos de que sua querida boceta se transformou em transporte
coletivo, não perdem a oportunidade de lhe enfiar as mãos, sem a menor
delicadeza, afinal é preciso dilatar. O corpo da mulher é a casa da mãe Joana.
Por último, amamentar... Para quem se horroriza facilmente, ver sair leite de
dentro de seus peitos estufados e doloridos, drenados e ordenhados, te
remetendo a uma vaca: martírio.”
Dúvidas: Carlos e Mariana. “O
gosto de tudo em sua vida de adulto vinha com uma pitada de plástico. Ele mesmo
não sabia se por fazer leve e universal o sabor de fortes ingredientes, se por
conta do processo industrial de conservação e transporte dos alimentos, se por
amansar os sentimentos.” “– A senhorita tem toda a razão. Eu mesmo explico.” “É
claro que um homem só dá razão a uma mulher por motivos vis ou muito respeito,
coisa rara. Claro é, também, que as mulheres se excitam quando um belo homem
lhes dá razão, e nesse jogo besta, onde um se finge de morto e outro se
acredita importante, toda a espécie feminina se ferra. Carlos sabia disso,
Carlos era um expert, Carlos queria comer aquela mulher e disso não tinha
dúvidas.”
Sonhos: Fernanda e Mike. “Ele
bebia tranquilamente uma cerveja, assistia tranqüilo ao espetáculo e parecia
estar gostando daquilo. Fernanda olhava com o canto dos olhos, meio ressabiada,
desconfiada do destino, curiosa. O sorriso era doce, exalava bondade, os olhos
muito azul-claros pareciam sinceros e sofridos, afinal homem sem sofrimento não
tem graça. Ele, cada vez que aplaudia uma música, brincava. Não de caso
pensado. Uma brincadeira que saia pelos poros, mas não se expandia loucamente
para fora. Não contagiava, apenas dava alegria a que estivesse por perto.” “Esse
ingrediente faltava ‘a vida de Fernanda, que resolveu ficar ali apreciando o
bem-estar súbito e raro, a bela paisagem. Passado algum tempo tinha certeza de
que algo inédito havia acontecido em sua vida, um lance de sorte, fortuna,
acaso, nunca havia chegado tão perto de um homem lindo de verdade. Claro que já
tinha visto espécimes sublimes, mas no cinema, nas revistas, jamais ao vivo, em
cores, sentado ao seu lado. E quando ele abria a boca num movimento sutil com
os lábios, o palco se iluminava. Aquele modo de sorrir encarnava, com certeza a
bondade. A bondade abstrata e universal, que somente o grande mestre flamengo,
Rembrandt, fora capaz de retratar. Engraçado encontrar nos dias de hoje um
sorriso de tantos séculos atrás.”
Explosões: Cecília e Erasmo. “Na
mesa mãos se pegavam no ar, quase alcançando os ombros, davam vazão à excitação
sexual, muito mais ansiosas que as bocas, que mastigavam tranqüilas. Na saída
do restaurante um braço na cintura, ralando o peito esquerdo de Cecília, que se
sentia levemente molhada.” “No carro, olho no olho, de perder a respiração e
pensar: e agora, José? E foi ali mesmo que começou uma vontade infinita de
pegar com a boca, com os lábios, com a língua. Engoliram-se. E foi de arrasar.”
“Na cama dedos firmes, um pau resoluto e uma vontade de entrega sem medo. Ela
uivava, subia com as costas pela cabeceira da cama, era tanto, dava até medo,
um foguete no ventre e dizia: – para, e pedia não para, pelo amor de Deus! Ele
nem escutava, mas seu corpo adorava aquela dança, podia contar nos dedos as
vezes em que havia gozado balindo feito carneiro.”
Conquistas: Carlos e Mariana. “Sentia
segurança naquele conquistador barato, o tipo de homem por quem mulher nenhuma
poderia se apaixonar, apenas se divertir, essa era uma ideia extremamente
tranqüilizadora, deliciosa. Depois de duas vezes viúva, havia jurado: amor,
nunca mais. Afinal, tanto ela quanto Carlos sabiam que a paixão era um tipo
agressivo de câncer.”
Alfinetadas: Fernanda. “Fernanda
estava em mais um péssimo dia e com tanta raiva de tudo: do André, da
Austrália, da australiana, dos homens, especialmente daqueles que queriam
mulheres diferentes a cada semana, daquelas de precisavam de homens e dela
mesma, incapaz de resolver os seus problemas amorosos. Não teve dúvidas:
compraria um pinto e poria um ponto final em seus problemas sentimentais. Um
belo e autônomo consolo. Ninguém acoplado ao instrumento. Era só disso que a
mulher precisava.” “Foi à sex shop mais próxima, leu na placa, Kisses, loja de
conveniência erótica, conveniência? Isso quer dizer que se você, cara amiga ou
amigo, estiver sentindo tesão, mesmo que leve, tem onde saciar sua sede, a
qualquer hora do dia ou da noite, é só entrar na Kisses e comprar um pau, um
caralho, um nabo, uma cobra, uma jeba, uma vara, uma rola. Bateu uma fominha e
a cama está vazia? Visitas inesperadas? As amigas estão na mão e arrumam um
bofe, nem pagando? No problem, nas lojas Kisses, conveniências eróticas, você
encontra pintos dos mais variados formatos, cores e sabores. Vai chegar tarde
do trabalho? Peça a sua mãe: – mãe, por favor, passa na Kisses aí de baixo e me
compra um passarinho, uma balsa, uma cenoura, um vibrador, uma trolha. Suas
preocupações acabaram, porque logo ali, ma esquina, tudo à mão, mala, pirulito,
picolé, sorvetão, e ainda ferramenta, ganso, aríete, tromba, mastro e pingolim.
Viver deixara de ser muito perigoso.”
Amantes: Carlos e Mariana. “Mariana
não resistiu a um outro encontro, podia quase gozar só de pensar em Carlos
entrando nela. Rezava para que ele desistisse e logo em seguida rezava o
contrário. Seu medo era verdade, as palavras – paixão nunca mais – derretiam-se,
e ela se derramava. Achava estranho que se vissem apenas em seu apartamento,
não queria perguntar se ele era casado, sabia a resposta de cor.”
Sustos: Fernanda e Mike. “Sentia-se
totalmente deslocada em ambientes desconhecidos, tinha certeza da falta de um
pino na cabeça de qualquer estranho que se aproximassem. O que veriam nela?” “Perguntava
ao seu analista, a Deus, a todo mundo, por quê? Qual é o problema? Quem foi que
inventou isso? Quando passa? Aquele sentimento besta e doído de ser sem raízes,
sem chão, sem propósito, continuava.” “Tomava um café no vidro envidraçado do
museu, intervalo entre as aulas, do lado de fora via um passarinho agonizante,
último suspiro, pôs-se a chorar. O amor feminino era líquido, vivia molhada de
lágrimas.”
Socorros: Fernanda e Mike. “Fernanda,
fascinada, pensava na sua relação com André. Poderia comprar a peça, colocá-la
no terraço do apartamento e todo o santo dia rezar para que Deus a proteja
daquele tipo de maldição, a maldição de gozar pela dor, de gozar pela estúpida
capacidade de agüentar um homem a qualquer preço. Seu filho saberia desde
sempre que nunca se deve tratar uma mulher assim e os vizinhos teriam certeza
de sua loucura, pena que o bronze fosse tão caro.” “Mike achou a peça de mau
gosto, absurda, doentia, os homens não eram assim, isso era coisa de gay, de
depravado, de louco, os homens amam as mulheres, as tratam bem... Mas não
conseguia desviar o olhar daquela mulher que mesmo em metal gozava e daquele
homem que mesmo sendo cruel lhe dava infinito prazer.” “E ela não sabia se era
destino, se era bom, se era ruim, se era. Sentia uma nova paixão e fracasso.
Precisava de ajuda. Escutou algo no rádio sobre um grupo de auto-ajuda anônimo
– mulheres que vivem molhadas demais... Era com ela.” Conto de importância
fundamental ao contexto da obra.
Pesadelos: Décio, Sônia e Lígia.
“Estava enjoado e cansado. Voltou para a cama, queria paz. Chorou muito. Sempre
se lamentando da vida que lhe dera tanto, que lhe tirara tudo. Queria morrer e
não tinha coragem. Quem sabe, Deus piedoso lhe mandasse um ladrão armado, um
acidente de carro, alguma solução.” “Elas estavam consternadas pelo sofrimento
dele. Olhavam-se com a cumplicidade que somente um casal antigo é capaz de ter
e pensavam a mesma coisa: ele nunca teve jeito com a mulheres, nunca as
entendeu, sempre achando que sexo era coisa de puta. Mas quem é que poderia lhe
dizer que mulher não é boneca?” “Os olhos de Décio se encheram de lágrimas.” “–
Eu pensei que Deus estava do meu lado, só essa vez.” “Como explicar que Deus
não tinha nada a ver com isso?” “Tinham muito a dizer sobre o amor e a paixão.
Tiveram um caso tão forte e tão bonito, que ainda queriam estar juntas, sempre.
Por isso aceitaram pacificamente a diminuição do tesão. Nunca mais encontraram
o mesmo amor, a mesma loucura divinamente obscena que viveram. Mas não se
importavam. Tinham algo extremamente raro, um amor feito de restos ardentes do
passado e um companheirismo sem igual.” O conto mais melancólico –
especialmente para Décio – e apresenta ainda uma bela descrição do sucesso no
relacionamento à dois.
Luxúrias: Cecília e Erasmo. “O
medo de não saber quem estava do lado de fora, de ser pega daquele jeito, a
excitava. Ela se derretia, se agitava. Silêncio novamente, silêncio misturado à
expectativa de escutar passos, pessoas, Erasmo. Seu sexo doía. A respiração em
espasmos aumentava o tesão que tomava conta de todo o seu ser. Cecília fora
reduzida a um corpo molhado em
chamas.” O conto mais vibrante, vívido!
Sobreviventes: Mike. “João e
Maria, seus filhos, que saudade! As crianças foram morar com os avós no
interior, ele não tinha emprego, não tinha renda, nem mais vergonha na cara. Pediu
a um amigo para morar de favor naquele lixo e aos sogros que cuidassem dos
filhos. E tinha que agradecer! Podia ter sido pior, ainda não havia pedido
dinheiro aos seus pais aposentados.” “Na UTI ela pediu: – tenha pena de mim!
Ele chorou até se acabar. Ela querendo morrer. E ele? Tentando se salvar.”
“Mike queria voltar a ganhar dinheiro e o convívio das crianças. Queria
perdão.”
Comidas: Fernanda e Mike. “O
tempo escorre, os filhos chegam, o amor acaba. E sem endereço fixo procura ou é
procurado por alguém e se instala no vão dos dias, escondido entre estranhos
hábitos e boas maneiras, torna-se um vício.” “Docemente confessava que tinha
medo de ficar só com as crianças, órfãos sofrendo, o futuro e a culpa da saúde
plena contra si. Meteu os pés pelas mãos da solidariedade. Depois que passa é
difícil explicar, as razões eram desculpas. Fechou os olhos por mais tempo que
um piscar exige. Encheu os copos de vinho.” “Se eu tivesse algum dinheiro,
perspectivas, não sou futuro para alguém com passado e renda.” “...de tanto
querer poupar os outros da dor acabou muito machucado, não sabia ferir nem
sabia se queria viver...”
Renascimentos: Fernanda. “Molhada
no súbito encontro de seu desejo com suas faltas.” “Porque o amor é um ser
despudorado e alegre.”
Lá pelo conto sexto, percebe-se
que não é casual o fato das personagens de mesmo nome se alternarem, repetirem e
interagirem ao longo dos textos: trata-se, de fato, de um livro com as características
de contos independentes e também aquelas de um romance – a descrição longa das
ações e sentimentos de personagens fictícios, numa transposição da vida para o
plano artístico.
Uma observação adicional é a de
que os sentimentos e os relacionamentos descritos nos textos apresentam forte
conotação sexual – segundo a tradição da psicanálise freudiana. E, num primeiro
momento, senti falta de outros elementos – dos símbolos, dos mitos e da
alquimia (da psicanálise junguiana) – que acredito desempenharem também um
papel importante no comportamento e na compreensão do humano.
Entretanto, numa reflexão mais
cuidadosa, compreende-se que o elemento transcendente é exatamente aquele
responsável pela amarração dos contos na unidade de um romance, ficando isso
patente no próprio título escolhido pela escritora para a sua obra: “Perpétuo
Socorro”.
1 Comentário
Jorge: bela resenha , sobre um trabalho enriquecedor e bem estruturado.Grande abraço,André
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