PEDAÇO
Um filho que morre é um tanto da gente que se desfaz,
uma saudade sem reencontro, uma dor sem cura...
Lidia abriu os olhos e a
sentiu percorrer seu corpo com toda a crueldade de que era dotada. A dor, como
uma cobra a chicotear o couro duro, subia suas pernas e terminava por
destroçar-lhe o ventre, constante, interminável. Tentou reconhecer o lugar: a
cama de lençóis brancos, o quarto enfeitado de gerânios e rosas amarelas, o
feixe de luz que entrava por uma persiana quase fechada. “Um hospital” – pensou
assim que seus olhos encontraram o fino tubo que alimentava seu braço com o líquido
transparente.
“Ah, minha querida, graças a
Deus!” – a voz masculina erguia um corpo amassado de uma cadeira onde o sol não
iluminava. “Nossa, Carlos, que susto! Não consegui ver você aí nesse canto. Por
que estou neste hospital? O que aconteceu?” – Lidia tentou se levantar, mas a
dor cortou todo seu corpo a ponto de jogar-lhe novamente sobre o travesseiro.
“Não, Lidia, não se levante, não deve fazer qualquer esforço” – tomou um copo
de água nas mãos, inseriu o canudo vermelho que estava ao lado da jarra e
ofereceu à mulher. “Tome, beba um pouco de água, sua boca deve estar seca, está
dormindo há cinco horas já. Não se levante, vire a cabeça e beba com o canudo”.
Lidia correspondeu ao marido
enquanto constatava o carinho com que ele amparava seu pescoço com uma das mãos
e segurava o copo com a outra. Tudo para que ela tomasse um gole de água, tudo para
que ela o amasse novamente. Mas Lidia pode reviver por alguns segundos apenas a
sensação dos primeiros abraços, quando faziam amor no Morro São Sebastião, na
madrugada de Ouro Preto, para depois assistirem o sol a banhar-lhes de aplausos
alaranjados. “Agora deite, Lidia. Vou chamar o médico já que você acordou”. Os
abraços. Apenas por alguns segundos. Pois seu coração não já não pertencia a
Carlos, mas a Frederico.
“Frederico...” – murmurou
Lidia. O sibilo da dor trazia os flashes das horas anteriores. As escadas e o
silêncio de Frederico de pé atrás da porta que Lidia batera ao sair. O silêncio
e a portaria abandonada do prédio na Rua Jaguaribe. A rua e o silêncio rompido
pelos brados de uma cidade a pulsar. A rua e o carro. O carro. O carro... “Meu
Deus...” – suspirou ao pousar a mão sobre o ventre. Carlos entrou.
“Carlos, o que...” – foi
interrompida pela voz firme que seguia o marido. “Olá, Lidia, como vai? Meu
nome é Gilberto, sou ginecologista e obstetra, e você está sob meus cuidados” –
o médico era o doutor Gilberto Arruda, chefe de obstetrícia do Hospital Santa Isabel.
“O que aconteceu com o bebê?” – Lidia se revolvia na cama como que anestesiada
pela adrenalina. Lembrara-se do acidente, lembrara-se do bebê. “Fique calma,
porque você teve algumas fraturas em decorrência do atropelamento, e é preciso
ter cautela ao movimentar-se” – o médico segurou-lhe nos ombros e deitou-a
novamente enquanto fixava-lhe os olhos como que a impor confiança.
“Você sofreu um
atropelamento muito sério, chegou desacordada no hospital e com hemorragias.
Felizmente o hospital é próximo ao local do acidente, por isso não houve
quaisquer danos permanentes à sua locomoção. Mas você teve um aborto em
decorrência do trauma”. O coração de Lidia desistiu de bater por instantes. Não
conseguiu chorar, era como se as lágrimas tivessem acompanhado o coração em seu
retiro. Calos chorava. Chorava pelo filho morto que já amava por tanto desejar.
Mas segurava com ternura a mão da mulher, na esperança de passar-lhe uma tranquilidade
que nunca sentira.
“Estimamos que sua gravidez
fosse de aproximadamente dois meses e vinte dias. Fizemos a curetagem e todos
os procedimentos necessários. Os medicamentos para a dor já estão sendo
administrados neste soro.” – examinou o conjunto que se iniciava com uma bolsa
de plástico e fundia-se no braço branco de Lidia. “Não se preocupe, em alguns
meses vocês poderão tentar novamente.” – Lidia sequer ouviu as palavras do
médico, travestidas de uma esperança tão gentil que Carlos imediatamente tomou
para si.
O corpo de Lidia flutuava. A
mente suicidara-se em um vácuo tão imenso que podia palpar a dor, conversar com
ela, abraçá-la. “Nunca imaginei que seria desta forma” – observou Lidia. “O
vazio... A sensação da perda, de não ser mais o que jamais foi”. Carlos
beijou-lhe os lábios inertes e ela pode sentir o sal da lágrima que encontrara
uma maneira de regar sua sede. O olhar do homem abraçou-a enquanto, com os
dedos compridos, ele acariciava uma mecha de seus cabelos ainda sujos de sangue
seco – “Apesar dessa dor imensa, querida, você me fez o homem mais feliz do
mundo”. Lidia encarou-o confusa. Carlos continuou: “Eu pude finalmente me
sentir um pai”.
Uma lágrima percorreu a face
de Lidia. Era o coração que brotava-lhe dos olhos num lanço de dor. *
*ESTE TEXTO, AQUI APRESENTADO COMO CONTO, INTEGRA O FOLHETIM "O ÚLTIMO TANGO" NO BLOGUE DA AUTORA.
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com . Quer ver mais Contação? Clique AQUI!
1 Comentário
Mariela,
Um Ótimo Conto!
Gostei do forte sentimento transmitido através da narrativa.
Um Beijo! Jorge
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