Fez vinte anos e
decidiu. Estava cansado. Cansado de conviver. Com os outros. Cansado. De ouvir,
sentir e tocar. Relações. Odiava relações. E o simples fato de odiar já era uma
relação. E então ele parou. Não precisaria.
Sim. Petrificar a
carne e a alma. Se é que uma e outra se distinguiam. Tinha lá suas dúvidas...
A mãe
enlouquecera. O filho duro. Sentado. Apenas os olhos de tudo engolir e ver. Não
era uma relação? Sim, mas não queria a morte. Diminuiria. Em câmara lenta. Os amigos
vinham, conversavam. Não havia resposta. O olho vampiro devorando as sensações,
as imagens da contrariedade que se delineava no rosto alheio. Tudo bem. Adotaria
só essa realação. Com os humanos. Com gente. Olharia no olho. Tão profundamente
que arrancaria a vida de qualquer um. Arrancaria a vida de todos. Sim. Isso lhe
bastava. Alimentar-se do outro. Sua imagem. Sua sensação. E se eles não o
visitassem mais? Não importaria. Nada importaria. O ar está repleto de luz e
vida. De som. De micróbios. De germes, de insetos. Tinha seu corpo. Sua pele
esburacada, porosa. Alimentaria-se de si mesmo. Sua dor. Sua alegria. Seu medo.
Louca a mãe
morreu. Não chorou uma lágrima. Nem várias. Não tinha mais água no corpo. Seco.
Sentiu pena de si. A janela do quarto
era longe... e não tinha vontade do outro lado. Tão cheio de tudo e de tantas
relações. Queria provar algo?
Pensava que não.
Sua voz circundante sob sua cabeça dizia que não. Voz ecoada em som que
deslisava pelas paredes, escadas e frestas da casa. Grave o som. Mas sabia que
queria provar. Queria provar que não era gente. Não como os outros. Os outros
eram os outros. Ele era Ele. E não queria relações. Contatos.
A irmã ficou. Magra
e alta. Rosto fino e corpo curvado. Odiava a irmã. Todo o seu cuidado, todo o
seu amor. Odiava o amor. Sentimento bestial. Elemento que transformava uma
criatura em um imbecil. Todos eram imbecis. Ela fazia comida. Ele não comia. Se
recusava. Não aceitaria nada de ninguém. Tá... só a pensão que a mãe deixára. Só
os bens da família... mas isso era razoável. Precisava resistir nesse estranho
mundo. Precisava estar preparado. A irmã fazia que ficava brava e saia do
quarto. Depois de quatro horas ele olhava o prato, frio, sem gosto e sem vida. E
comia. Pensava que neste momento o alimento já havia se despegado de qualquer
relação de amor ou carinho da irmã. Estaria pronto para ir pro lixo. Comida de
ninguém. Então comia. Sorrindo. Em sua cabeça o alimento estava limpo. Isento de
qualquer relação de amizade, amor, ou responsabilidade. Prato frio e sem vida. Cadáver
estendido no quarto. Então comia.
Sim... algumas
vezes chorava... tinha a nítida impressão que era um hipócrita. Sim... quase
acreditava nisso... mas quando a irmã vinha correndo e o abraçava, ele
estacava. Estátua fria. Morta. Corpo sem vida
E então a irmã
depois de alguns anos morreu. E ele ficou só. Arregalou os grandes olhos para o
mundo e teve uma grande sensação. De morte. E era estranho. Parecia estar
dentro do corpo da irmã. Nave espacial. Observava pela janela. Os olhos. Arrastaram-nos
para uma cama e um caixão os recebeu. Depois o caixão saiu. Ela. Ela tinha ido.
Ele estava sentado. Morto.
Estava morto. Um
enfermeiro aproximou-se. "E esse velho?"
"é só uma
múmia... não tá vendo...?"
O outro
enfermeiro abaixou-se e foi sugado pelos olhos. Voltou assustado...
"não sei...
parece vivo..."
"...tá
morto..." "é um vegetal..."
"não fala, não anda nem caga..."
O outro sorriu. Amarelo.
Tinha sido capturado pelo medo.
"...a gente
faz o quê?"
"não faz...
deixa apodrecer..."
"...mas..."
"...tô
indo..."
A porta bateu. Trancada.
Abriu novamente e uma vizinha entrou. E o marido.
"...pobrezinho..."
"...que
nada... era um imbecil..."
"...ta
morto?"
"...nasceu
morto..."
"e
agora...?"
"fecha a
porta e deixa que alguém da família venha..."
" já
avisou...?"
A porta bateu. Sozinho.
Ainda ouvia a voz do marido da mulher dizendo "já"; mas não
acreditava muito... também não importava muito...
Pensou que
poderia gritar... chorar até. Mas sorriu.
2 comentários
Ronie Von,
Conto Funesto, Mas Bom!
"Prato frio e sem vida."
Um Grande Abraço, Jorge
Excelente texto ; a catatonia da vida que não é mais vida.Parabéns,André.
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