domingo, 24 de junho de 2012

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Mitos do eterno retorno

Estamos rodeados de aparelhos e dispositivos electrónicos de vária proveniência, de indubitável modernidade, mas no seu âmago encontramos a mesma matéria humana que nos acompanha desde que começámos a pintar cavernas: estamos rodeados de histórias que não se movem. A expressão surge a propósito da estrutura subjacente ao espectáculo das telenovelas. Efectivamente, podemos, a qualquer momento, entrar numa dessas histórias, abandoná-la para a retomar mais à frente: ela está sempre no mesmo sítio.
No mesmo sítio e nos mesmos temas: amor não correspondido; amor proibido; amizade traída; perda de uma pessoa querida etc, etc… Mas esses temas não são organizados numa história que se dirige a um desfecho. Eles combinam-se e recombinam-se em indecisões eternas que subitamente se interrompem. O final catártico surge inopinadamente: os maus são castigados; os bons, finalmente, recompensados.
A telenovela socorre-se de uma narrativa que imita um gesto antigo: conta uma história que tem um pico de tensão e interesse, para depois proceder por retrocesso. O segredo destes folhetins reside precisamente aí: na arte de fazer avançar a acção, para de seguida a diluir e recomeçar tudo de novo.
O João Olhos d´Água apaixona-se pela Maria Arco-íris, sofre com a desilusão amorosa, para depois agir como se não tivesse memória: aproxima-se de outra bem amada. Reconta-se novamente a mesma história. E isto, para os vários temas que enumerámos.
O conhecido autor Mircea Eliade desenvolve a ideia de Eterno de Retorno, a propósito da vivência do tempo em tribos primitivas. A circularidade das estações e dos acontecimentos estruturava um quotidiano em que o novo e o inesperado eram repudiados. Tudo o que interessava resumia-se aos acontecimentos que já inscritos nos mitos iniciais.
É claro que esta ideia foi sendo diluída noutras cosmovisões, mas também não deixa de ser verdade que a sua importância é ainda relevante: o Natal, a Páscoa, os Santos populares mimetizam as festas solares e, neste sentido, são feridas da mesmíssima lógica circular.
Habitamos, porém uma civilização em que o tempo deixou de estar na dependência directa dos astros. Será que as novelas são uma expressão de um eterno retorno, no âmbito de um tempo colectivo que é cada vez mais marcado pelos media? É que as telenovelas conseguiram construir uma estrutura em que o novo se tornou completamente previsível… tal como acontecia nas aldeias mais recônditas com os seus mitos e as suas crenças.
Eis um outro modo de encarar a ideia de aldeia global.

O Primeiro de Janeiro , 29 Agosto 2007.

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