quarta-feira, 27 de junho de 2012



O ANJO

8.

- Nosso  primeiro filho – ela sorriu.
- Logo...
      A gravidez de Ariane começava e  arredondava o rosto da moça com uma saúde que valorizava o vítreo e o enlanguescia. Uma pequena comunidade se instalara nas proximidades do casal. Alguns trabalhavam os frutos da terra, outros construíam moradas que enfeitavam de arcos e flores. Artesãos ocupavam a maior parte do dia nas lides da manutenção da vida, enquanto artistas encenavam poemas, escreviam roteiros ou telas. Não faltavam crianças, nem educadores.  Sem um ritmo demarcado estavam à esquerda e à direita, compondo um cenário de trabalho e satisfação.
      Ariane tranqüilizava-se com esse aconchego humano. A natureza, se a deslumbrara também lhe despertara a angústia, escurecendo aquelas noites quase verdes em seus marítimos silêncios. O amado, tão nubente em sua leveza, era por demais pagão naquele meio onipotente.  Ariane procurara recantos aonde as flores fossem mais faceiras, as árvores mais agudas em seus azuis. Mas não se convencera.  Julgava todo o lugar tomado e imbuído da suficiência do astro, confidente de suas explosões e repentes, da reverência e grandiosidade do oceano, lânguido e leite, aprofundando a luz nos cânticos da terra.
      Ali o hino era o do adorador e sua entrega e não o do herói e sua mística de aves e bosque, perfumes frescos de madrugadas regadas à geadas de tensa solidão. Ariane dilatava-se e por isso buscava uma energia de baixos e fados, momentos e sentimentos. Mesmo que fossem vagos ou loucos ou lentos, que estrangulassem no lugar essa evidência de majestade e clarividência.
     Sonhava com o filho, sondava-lhe as vagas e virtudes, presumia seus ensaios e beatitudes, os brinquedos, os amigos, as rusgas e arranhões de suas disputas. A bem da verdade era sua preferência chamar-lhe filha, para podê-la colorir de mística e rimas, ondeá-la de serpentinas, fazê-la usar as fitas e vestidos com as estampas de flores que nunca ousara. Não lhe ensinaria aquelas marchas de idéias, jamais segredaria os tormentos do Sol , esse calor alucinado de trombadas do hélio. Antes, seriam as aves e as naves, a nata, o cheiro do pão e o vagido dos filhos. Ah, se fosse uma filha...
- Você está mais tranqüila...
- É fato, o aéreo desse fogo me ofuscava. Agora que sinto o cheiro da terra refresco-me com alguma água.
- Tanto líquido – e mostrou-lhe o mar.
- Sempre tão claro, muito azul e ouro, mal se distingue do céu. É altaneiro, ameaçador em suas vísceras, posso mesmo ouvir, nos muitos dias em que me deixas sozinha, um ruído rancoroso, sôfrego,desses que espumam os escravos, ainda quando dóceis, desses que prometem os que se amassam no tempo.
 - Também me tingiram de rubro algumas daquelas noites. Era espesso o ar, coberto de prata e jasmim, clareado do canto da lua, vacilante de espuma. Sondavam-nos os elementos. As formas que não se formaram já se presumiam e queriam acordar-se em nós.
- Existem lugares próprios para a solidão, como os oceanos muito profundos, as florestas muito virgens. Não nos conhecem, estranham o vagido da consciência, essa eletricidade de sílabas e interrogações que a movem.
- Os astros, em lugares assim, se fazem ouvir melhor, são maiores, perturbam , alegram , assustam com seu cochicho nas noites.
- Eu não precisaria vir até aqui para ouvi-los. O fiz em muitas noites, mais claras e frias, as árvores me protegiam. Afinal, os arvoredos, esses entes de folhas e galhos, são pregados com vigor na terra e comunicam na noite aos corpos externos o limite dos nossos domínios.
- Ainda assim reconheço a tua angústia. A pulsão, aqui, é mais forte. Acaba-se por recolher a alma e a sina numa oração pagã, sem os líquidos de torneiras. É a lucidez que você tanto aspira, e aqui é o ensejo e a conquista. Concordo com você, porém, que devemos ser cautelosos e mostrarmos aos entes do lugar nossos triunfos, nossas defesas.

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