O ANJO
8.
- Nosso primeiro filho – ela sorriu.
- Logo...
A gravidez de Ariane começava e arredondava o rosto da moça com uma saúde que
valorizava o vítreo e o enlanguescia. Uma pequena comunidade se instalara nas
proximidades do casal. Alguns trabalhavam os frutos da terra, outros construíam
moradas que enfeitavam de arcos e flores. Artesãos ocupavam a maior parte do
dia nas lides da manutenção da vida, enquanto artistas encenavam poemas,
escreviam roteiros ou telas. Não faltavam crianças, nem educadores. Sem um ritmo demarcado estavam à esquerda e à
direita, compondo um cenário de trabalho e satisfação.
Ariane tranqüilizava-se com esse
aconchego humano. A natureza, se a deslumbrara também lhe despertara a
angústia, escurecendo aquelas noites quase verdes em seus marítimos silêncios.
O amado, tão nubente em sua leveza, era por demais pagão naquele meio
onipotente. Ariane procurara recantos
aonde as flores fossem mais faceiras, as árvores mais agudas em seus azuis. Mas
não se convencera. Julgava todo o lugar
tomado e imbuído da suficiência do astro, confidente de suas explosões e
repentes, da reverência e grandiosidade do oceano, lânguido e leite,
aprofundando a luz nos cânticos da terra.
Ali o hino era o do adorador e sua
entrega e não o do herói e sua mística de aves e bosque, perfumes frescos de
madrugadas regadas à geadas de tensa solidão. Ariane dilatava-se e por isso
buscava uma energia de baixos e fados, momentos e sentimentos. Mesmo que fossem
vagos ou loucos ou lentos, que estrangulassem no lugar essa evidência de
majestade e clarividência.
Sonhava com o filho, sondava-lhe as vagas
e virtudes, presumia seus ensaios e beatitudes, os brinquedos, os amigos, as
rusgas e arranhões de suas disputas. A bem da verdade era sua preferência
chamar-lhe filha, para podê-la colorir de mística e rimas, ondeá-la de
serpentinas, fazê-la usar as fitas e vestidos com as estampas de flores que
nunca ousara. Não lhe ensinaria aquelas marchas de idéias, jamais segredaria os
tormentos do Sol , esse calor alucinado de trombadas do hélio. Antes, seriam as
aves e as naves, a nata, o cheiro do pão e o vagido dos filhos. Ah, se fosse
uma filha...
- Você
está mais tranqüila...
- É fato,
o aéreo desse fogo me ofuscava. Agora que sinto o cheiro da terra refresco-me
com alguma água.
- Tanto
líquido – e mostrou-lhe o mar.
- Sempre
tão claro, muito azul e ouro, mal se distingue do céu. É altaneiro, ameaçador
em suas vísceras, posso mesmo ouvir, nos muitos dias em que me deixas sozinha,
um ruído rancoroso, sôfrego,desses que espumam os escravos, ainda quando
dóceis, desses que prometem os que se amassam no tempo.
- Também me tingiram de rubro
algumas daquelas noites. Era espesso o ar, coberto de prata e jasmim, clareado
do canto da lua, vacilante de espuma. Sondavam-nos os elementos. As formas que
não se formaram já se presumiam e queriam acordar-se em nós.
- Existem lugares próprios para a solidão, como os oceanos muito
profundos, as florestas muito virgens. Não nos conhecem, estranham o vagido da
consciência, essa eletricidade de sílabas e interrogações que a movem.
- Os astros, em lugares assim, se fazem ouvir melhor, são maiores,
perturbam , alegram , assustam com seu cochicho nas noites.
- Eu não precisaria vir até aqui para ouvi-los. O fiz em muitas noites,
mais claras e frias, as árvores me protegiam. Afinal, os arvoredos, esses entes
de folhas e galhos, são pregados com vigor na terra e comunicam na noite aos
corpos externos o limite dos nossos domínios.
- Ainda assim reconheço a tua angústia. A pulsão, aqui, é mais forte.
Acaba-se por recolher a alma e a sina numa oração pagã, sem os líquidos de
torneiras. É a lucidez que você tanto aspira, e aqui é o ensejo e a conquista.
Concordo com você, porém, que devemos ser cautelosos e mostrarmos aos entes do
lugar nossos triunfos, nossas defesas.
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