terça-feira, 26 de junho de 2012

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Sabedoria

Parei de contar essa história justamente porque sempre me aborrece ouvir a mesma pergunta toda vez:

- Ué? Existe fazenda em Belo Horizonte?

O ué, em vez do uai, evidencia que o interlocutor não é mineiro. Mas sim, existe, como existe fazenda no Rio de Janeiro e até em Nova Iorque. Sendo assim, vou prosseguir. Fui passar as férias na fazenda do tio Edmundo, em Belo Horizonte. Tio Edmundo é irmão do papai. Não sei exatamente como foi que ficou rico. Acho que apenas seguiu o fluxo natural da vida e acabou rico. De repente, papai ficou pobre justamente porque veio procurar dinheiro aqui no Rio de Janeiro, em vez de ter ficado na fazenda com o tio. Seja como for, o tio tem dinheiro, o que faz com que ele tenha tempo de sobra para outras preocupações na vida. Uma delas é Anabela.

A moça tem vinte e oito anos, mas não se nota. Não só pelo jeito de menina boba, mas pela pele, que conserva aquele viço de juventude intocada que, aqui no Rio, as meninas perdem com doze ou treze anos. Sendo assim, quando deitei os olhos na pequena, imaginei logo que ela amava mais a fazenda que ao tio Edmundo. Mas, a bem da verdade, meus olhos só deitavam na moça quando ela própria estava prestes a ir se deitar. Nas primeiras horas da manhã, enquanto eu retomava na fazenda as horas de sono que a cidade me interromperia com buzinas, Anabela preparava o almoço. Enquanto eu almoçava com o tio, ela apenas passava para dar um alô e se punha a ler qualquer besteira de moça à beira do açude. Depois, eu saía com o tio, enquanto ela almoçava com as empregadas, ajudava a dar um jeito na cozinha e tirava a sesta. E só sei disso porque um dia deixei o tio na mão, para ficar em casa conferindo o que fazia aquela moça tão bonita para conservar sua beleza. Após o sono da tarde, Anabela tricotava na varanda. As cinco e tanta conferia o andamento do jantar, despedia do tio com um beijinho doce e ia para a igreja. Tanto assim que eu, bem como o tio, só conseguíamos olhar com calma quando ela já estava prestes a se recolher aos seus aposentos.

Nesse dia, puxando a prosa com o tio depois da despedida do beijinho doce, perguntei meio sem jeito se ele não tem medo, com essa diferença de idade toda, enfim, aquele papo de cerca-lourenço. Mas tio Edmundo estava muito seguro de si:

- Anabela passa o dia inteirinho na fazenda, sobrinho. Tem jeito de fazer nada não. Só sai daqui pra ir à igreja. E eu confio de olho fechado.

O tio disse isso com aquele jeito de Minas, mas quando tento reproduzir fica ridículo. Sentamos para tomar a sopa. Antes disso, fui ligar o rádio da sala para obter notícias do América Mineiro, que naquela noite de quarta-feira enfrentaria meu Flamengo pelo Campeonato Brasileiro. Nem bem cheguei ao rádio e o tio me interrompeu:

- Liga não, sobrinho! Aqui só liga o rádio depois do Ângelus.

Achei que era só mais uma tradição de fazenda, mas o tio continuou explicando.

- Às dezoito horas, quando bate o Ângelus, o padre dá mais uma batida de sino no final pra me avisar que Anabela foi à missa. Se eu ligo o rádio antes, não presto atenção no sino.

Antes fosse uma tradição da fazenda, porque foi aí que eu não entendi nada mesmo:

- Mas tio, o senhor não disse que confiava de olhos fechados?

Ao passo que titio, em sua infinita sabedoria mineira, respondeu:

- É, uai. De olho fechado mesmo. Mas de ouvido aberto.

Titio é um gênio. Mas eu não disse que quando tento reproduzir fica ridículo?

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