sábado, 9 de junho de 2012

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O CESSAR DAS SESSÕES




Foto: Museu Freud, Londres.



Fiz análise durante um certo tempo, por motivo que não vem ao caso expor aqui. Esse certo tempo na verdade não chegou a 3 meses, o suficiente para que eu me desse alta – embora estivesse pior que no início das sessões. Bem pior, descrente da panacéia freudiana e de mim mesmo, me achando um caso perdido.

Era uma sessão semanal, às sextas e após o trabalho. Rua tranquila, lugar gostoso, consultório aconchegante. A iluminação indireta, só um abajur com uma lâmpada fraquinha. Sentia-me confortável com o chenile do divã e com a perspectiva de 50 longos minutos para um trato nos miolos. O único problema era justamente esse – os tais 50 minutos cravados eram longos demais. O que para os outros pacientes passava voando, para mim parecia todo o período paleozóico.

O analista seguia a linha ortodoxa, freudiano até a medula. E como todo discípulo empedernido do velho Sigmund, se agarrava aos sonhos, lapsos e associações livres pra ir formando o quebra-cabeças. Nesse caso, o monta-cabeças.

Mas o fato é que o homem não abria a boca. Se havia uma análise em curso naquelas quatro paredes só ele sabia, porque absolutamente não compartilhava com a outra parte interessada. Com receio de perguntar, eu também ficava quieto.

Tenho relativa facilidade de não pensar em nada, quando me é possível desfrutar dessa benção. Tanto que no começo achava bom ficar ali, como um acéfalo, os olhos pregados no teto. Só que tudo tem limite. O tempo passando, o taxímetro correndo e eu olhando aqueles certificados todos na parede. As letras góticas com o nome do doutor. A diferença de desenho do D de um diploma para o D de outro. Um em tinta dourada, outro em nanquim, o de graduação de 1972, o de especialização de 1977, o de mestrado de 1979...

Tomei a iniciativa:
- O senhor não vai dizer nada?
- Quem tem de falar é você.
- Mas vou falar o quê?
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.

Dizer que eu estava pensando na letra gótica do diploma era demais. Ou de menos. Mas era a verdade, caramba. Eu pagando uma senhora grana para ficar viajando nas firulas e arabescos de um diploma.

Fechava os olhos e nada. Do nada branco passava para um nada negro e sem saída. E o analista impassível, virado de costas pra mim, cruzando e descruzando as pernas. Aquele silêncio era uma goteira dentro da solitária, uma furadeira de impacto me perfurando os tímpanos.

Outro pensamento recorrente, mas inconfessável naquelas circunstâncias: o que ele, analista, estaria pensando? Conjectura sobre o meu silêncio? Fica ali, caraminholando, empenhado em me livrar de minhas neuroses, ou não vê a hora de dar o tempo regulamentar pra pegar seu cineminha?

Me dei conta de que, além de estar pensando no que estava pensando, estava começando a pensar no que o analista estava pensando de mim. Racionalizava o processo, filtrava, censurava, estragava tudo.

E assim foi, não sei quantas vezes. Os brancos eram cada vez maiores. Vinte, trinta, quarenta minutos sem falar nada. O último deve ter durado uns quarenta e sete, porque logo depois ele me mandou embora.

Se bem me lembro, os três minutos finais foram mais ou menos assim:
- Fala alguma coisa, doutor. Não aguento mais esse silêncio.
Pela enésima vez, ele argumentou:
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.
- Estava pensando na música que tocava no rádio enquanto vinha pra cá.
- E você gosta dessa música?
- Detesto.
- Certo. Que mais?
- Sei lá... o que me ocorre agora é que vou ter que comer um hambúrguer pra matar a fome quando sair daqui.
- Hum. Sei, sei.

E sentenciou, depois de longa pausa:
- Talvez o que você encontre aqui não lhe soe bem aos ouvidos, nem lhe caia bem no estômago.

Acertou na mosca. Pra mim bastava, meus fantasmas não eram tão assustadores assim. Encontraria formas mais econômicas de praticar meditação.

- Seus 50 minutos acabaram. Até sexta que vem.
- Até, doutor.

Tá lá me esperando, desde 1992.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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