Josevaldo chegou
cedo ao sobrado do doutor juiz. O homem
falou que queria o serviço terminado até as cinco da tarde. A casa da Rua
Harmonia, no bairro da Vila Madalena pertencia à mãe do doutor. Separado da esposa
por incompatibilidade de gênios, seu magistrado voltou a morar na casa dos
tempos de sua solteirice.
- Mãe, não se
preocupe que vou dar uma geral neste museu. Disse o filho á idosa senhora.
Resolveu começar a reforma trocando o portão de
ferro da entrada da garagem. Aqui entra o Josevaldo na história, pela porta dos fundos, é claro.
- Josevaldo, meu
filho, quero este portão velho no chão e o novo instalado para ontem, visse?
Disse o juiz imitando o sotaque nordestino, enquanto apertava os óculos
contra os olhos miudinhos.
Como o misto de
pedreiro, serralheiro e azulejista tinha cinco bocas para alimentar e morava
bem para lá do bairro de Guaianases, na periferia de São Paulo, não contou
conversa.
- Deixa comigo
doutor juiz, é dois palito e o portão novo tá aprumado!
Para arrancar o
portão antigo gastou quase três horas. Não contava com a dureza do concreto
velho das colunas. E dá-lhe marretada atrás de marretada! Tac! Tec! Toc!
Vez por outra,
seu doutor botava o cabeção para fora da janela e arreliava:
- Olha, olha, Josevaldo,
se você não trabalhar direito eu não pago, viu?
Outras vezes a
ameaça era pior:
- Se não ficar
pronto, você não vai mais construir meu sítio novo lá em Santa Isabel, falei?”
Puxa vida, isto
era tudo o que o pedreiro não queria. Contava com esta obra para ajeitar a vida
do filho mais novo, o Rosevaldo, que nasceu com uma deformidade genética no
braço direito e já estava passando do prazo para fazer a cirurgia corretiva.
Era um dinheirinho imprescindível, logo agora que estava uma paradeira geral
por causa da crise...
Josevaldo,
enquanto ouvia os impropérios de seu doutor, levantava a cabeça e fazia o nome
da cruz.
A tarde avançou
rapidamente. Nem deu tempo de Josevaldo almoçar. Suas pernas tremiam um pouco,
mas, como ele dizia -“vamo que vamo!”
- Diacho, eu devia de ter trazido o Toinho para
me ajudar, agora tô lascado! Resmungava o operário.
Seis da tarde, o
magistrado irrompeu irritadíssimo no “canteiro de obras” para fustigar mais uma
vez nosso humilde obreiro
- Porra,
criatura! Você vai me deixar na mão! Olha a chuva que vem por aí! Gritava o
patrão, com as mãos sujas de pasta de amendoim que escorria do meio do pão
francês mordiscado com imenso prazer. Nem bem terminou de vituperar, os pingos grossos
começaram a enlamear a calçada.
-`Tá que o
pariu! Gemeu Josevaldo já entrando em desespero.
- São 8 horas da noite e eu ainda estou aqui.
Ai, meu padim padre Cícero!
A chuva forte
não dera trégua. Mesmo coberto com uma grossa capa plástica, os olhos embaçados
pela água e pela fome não deixavam o pedreiro terminar o serviço. E tal qual o
mitológico Prometeu acorrentado, o pobre homem era torturado sem perdão.
Após terminar de
comer a famosa bacalhoada de sua mãe, seu doutor nem palitou os dentes e já foi
crescendo para cima do pedreiro com carga total:
- Cacete! Anda com este portão que eu tenho que guardar meu carro logo. Já são dez
horas da noite e a rua está cheio de nóias. Se triscarem no meu Pajero você
está fudido, entendeu, f-u-d-i-d-o!”
Agora a chuva
diminuiu, quase parou, mas o corpo de Josevaldo já não obedecia a
seus comandos. Faltava apenas encaixar o novo portão nos pinos, mas qual o quê!
As mãos trêmulas não ofereciam a eficácia necessária.
Seu doutor veio
pela última vez maltratar o infeliz obreiro. Desta feita nosso herói já não
atinava com as idéias. Ele observava atônito a bocarra de seu doutor que abria
e fechava emitindo um rosnado a
emplastar de sofrimento o ar ainda quente. Josevaldo pensava nos
filhinhos, pensava na mulher que o estava esperando, pensava na falta de
crédito do aparelho celular, pensava no boteco da esquina de sua casa, os
amigos jogando sinuca... Eis que o portão novo, escorrega das mãos do pedreiro
e cai por cima de seus dois pés, esmagando os metatarsos e as falanges de uma
maneira bestial. Daí por diante, os sentidos se esvaíram e o nosso super-homem
tomba desmaiado. O vizinho da casa em frente vem ver o que está acontecendo. A sirene
da ambulância afasta os veículos dos jovens de classe alta que produzem um
tráfego infernal nas noites de sábado.
Dizem que
Josevaldo deu sorte na Santa Casa de Misericórdia e entrou logo para o centro
cirúrgico.
Meia noite, seu
doutor toca a campainha do vizinho ao lado que jogava cartas na sala com seus
amigos.
- Vizinho, - era
assim que chamava a todos - será que posso guardar meu carro na sua garagem por
esta noite?
- Ora, não tem
problema, doutor Paulo, minha mulher está para o Guarujá e o meu mais velho está
em Ibiuna com a namorada, tem duas vagas, fique á vontade!
Após estacionar o veículo, seu
doutor chama o vigia da rua, pede a ele para encostar o portão novo no vão da sua
garagem e diz, estendendo-lhe um panetone que sobrara das festas de fim de ano:
- Dá uma
reforçada na vigilância para mim, tá bom?
_Ô, chefia, não
tem de quê, deixa comigo! Vou ficar de olho. Na sua casa ninguém se mete a
besta, não!
_ Obrigado
Nelsinho, agora vou dormir que estou só o pó da rabiola. Boa noite!
_ Boa noite, doutor
Paulo...
2 comentários
Betusko,
Um Ótimo Conto!
Sábado extenuante na vida do doutor juiz, rs
Um Forte Abraço! Jorge
Obrigado, Jorge. É um conto à moda antiga onde o que importa é o prazer de contar uma boa estória.
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