segunda-feira, 4 de junho de 2012

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O Portão

Josevaldo chegou cedo ao sobrado do doutor  juiz. O homem falou que queria o serviço terminado até as cinco da tarde. A casa da Rua Harmonia, no bairro da Vila Madalena pertencia à mãe do doutor. Separado da esposa por incompatibilidade de gênios, seu magistrado voltou a morar na casa dos tempos de sua solteirice.

- Mãe, não se preocupe que vou dar uma geral neste museu. Disse o filho á idosa senhora.
 Resolveu começar a reforma trocando o portão de ferro da entrada da garagem. Aqui entra o Josevaldo na história, pela porta dos fundos, é claro.
- Josevaldo, meu filho, quero este portão velho no chão e o novo instalado para ontem, visse? Disse o juiz imitando o sotaque  nordestino, enquanto apertava os óculos contra os olhos miudinhos.
Como o misto de pedreiro, serralheiro e azulejista tinha cinco bocas para alimentar e morava bem para lá do bairro de Guaianases, na periferia de São Paulo, não contou conversa.
- Deixa comigo doutor juiz, é dois palito e o portão novo tá aprumado!
 Pois é, o juiz do Fórum da Barra Funda estava com seu Pajero Full Zero quilômetro estacionado em frente à casa, aguardando o término do serviço. Contava que até a noitinha já poderia guardar seu valioso veículo na garagem, porque na rua não podia dormir, não. Sabe como é, apesar do alarme instalado, existem pessoas que só por maldade riscam a pintura com um prego, caco de vidro ou coisa que o valha. - Cruz credo! exclamava seu doutor. Ele se arrepiava ao pensar nestas coisas... Pintura perolizada, o bicho na oficina sofrendo reparo... Arre égua!
 Josevaldo largou a sacola na garagem e não se fez de rogado, sentou logo a pua no trabalho. Era sábado e com o dia beirando aos trinta graus de temperatura, o pedreiro suava em bicas.
Para arrancar o portão antigo gastou quase três horas. Não contava com a dureza do concreto velho das colunas. E dá-lhe marretada atrás de marretada! Tac! Tec! Toc!
Vez por outra, seu doutor botava o cabeção para fora da janela e arreliava:
- Olha, olha, Josevaldo, se você não trabalhar direito eu não pago, viu?
Outras vezes a ameaça era pior:
- Se não ficar pronto, você não vai mais construir meu sítio novo lá em Santa Isabel, falei?”
Puxa vida, isto era tudo o que o pedreiro não queria. Contava com esta obra para ajeitar a vida do filho mais novo, o Rosevaldo, que nasceu com uma deformidade genética no braço direito e já estava passando do prazo para fazer a cirurgia corretiva. Era um dinheirinho imprescindível, logo agora que estava uma paradeira geral por causa da crise...
Josevaldo, enquanto ouvia os impropérios de seu doutor, levantava a cabeça e fazia o nome da cruz.
A tarde avançou rapidamente. Nem deu tempo de Josevaldo almoçar. Suas pernas tremiam um pouco, mas, como ele dizia  -“vamo que vamo!”
 - Diacho, eu devia de ter trazido o Toinho para me ajudar, agora tô lascado! Resmungava o operário.
Seis da tarde, o magistrado irrompeu irritadíssimo no “canteiro de obras” para fustigar mais uma vez nosso humilde obreiro
- Porra, criatura! Você vai me deixar na mão! Olha a chuva que vem por aí! Gritava o patrão, com as mãos sujas de pasta de amendoim que escorria do meio do pão francês mordiscado com imenso  prazer. Nem bem terminou de vituperar, os pingos grossos começaram a enlamear a calçada.
-`Tá que o pariu! Gemeu Josevaldo já entrando em desespero.
-  São 8 horas da noite e eu ainda estou aqui. Ai, meu padim padre Cícero!

A chuva forte não dera trégua. Mesmo coberto com uma grossa capa plástica, os olhos embaçados pela água e pela fome não deixavam o pedreiro terminar o serviço. E tal qual o mitológico Prometeu acorrentado, o pobre homem era torturado sem perdão.
Após terminar de comer a famosa bacalhoada de sua mãe, seu doutor nem palitou os dentes e já foi crescendo para cima do pedreiro com carga total:
- Cacete! Anda com este portão que eu tenho que guardar meu carro logo. Já são dez horas da noite e a rua está cheio de nóias. Se triscarem no meu Pajero você está fudido, entendeu, f-u-d-i-d-o!”

Agora a chuva diminuiu, quase parou, mas o corpo de Josevaldo já não obedecia a seus comandos. Faltava apenas encaixar o novo portão nos pinos, mas qual o quê! As mãos trêmulas não ofereciam a eficácia necessária.

Seu doutor veio pela última vez maltratar o infeliz obreiro. Desta feita nosso herói já não atinava com as idéias. Ele observava atônito a bocarra de seu doutor que abria e fechava emitindo um rosnado a  emplastar de sofrimento o ar ainda quente. Josevaldo pensava nos filhinhos, pensava na mulher que o estava esperando, pensava na falta de crédito do aparelho celular, pensava no boteco da esquina de sua casa, os amigos jogando sinuca... Eis que o portão novo, escorrega das mãos do pedreiro e cai por cima de seus dois pés, esmagando os metatarsos e as falanges de uma maneira bestial. Daí por diante, os sentidos se esvaíram e o nosso super-homem tomba desmaiado. O vizinho da casa em frente vem ver o que está acontecendo. A sirene da ambulância afasta os veículos dos jovens de classe alta que produzem um tráfego infernal nas noites de sábado.
Dizem que Josevaldo deu sorte na Santa Casa de Misericórdia e entrou logo para o centro cirúrgico.
Meia noite, seu doutor toca a campainha do vizinho ao lado que jogava cartas na sala com seus amigos.
- Vizinho, - era assim que chamava a todos - será que posso guardar meu carro na sua garagem por esta noite?
- Ora, não tem problema, doutor Paulo, minha mulher está para o Guarujá e o meu mais velho está em Ibiuna com a namorada, tem duas vagas, fique á vontade!
Após estacionar o veículo, seu doutor chama o vigia da rua, pede a ele para encostar o portão novo no vão da sua garagem e diz, estendendo-lhe um panetone que sobrara das festas de fim de ano:
- Dá uma reforçada na vigilância para mim, tá bom?
_Ô, chefia, não tem de quê, deixa comigo! Vou ficar de olho. Na sua casa ninguém se mete a besta, não!
_ Obrigado Nelsinho, agora vou dormir que estou só o pó da rabiola. Boa noite!
_ Boa noite, doutor Paulo... 

2 comentários

Jorge Xerxes

Betusko,

Um Ótimo Conto!

Sábado extenuante na vida do doutor juiz, rs

Um Forte Abraço! Jorge

Betusko

Obrigado, Jorge. É um conto à moda antiga onde o que importa é o prazer de contar uma boa estória.