quinta-feira, 12 de julho de 2012

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CONTAÇÃO: "A vida é cheia de clichês" - por M.Mei





A VIDA É CHEIA DE CLICHÊS



“Então está tudo bem mesmo, Lidia?” – era Mariana ao telefone. Tentava não mostrar a preocupação sobre o estado emocional da amiga – “Tem certeza que você está se sentindo melhor? Eu posso dar uma passadinha aí, levo um bolo, você não sabe a delícia de bolo que eu comprei ontem à tarde na La Boulangerie. Sabe aquela pertinho do escritório? Bom, preciso mesmo conversar com você, queria ouvir uns conselhos, sabe? O bolo é de chocolate e glacê, desde quando você recusa um bom glacê?”.
Mas Lidia só negava. Não queria visitas, não desejava conversar, não ansiava pela pena de alguém. “Ai, Mari, podemos marcar esse bolo pra outro dia? Eu sei que você está preocupada comigo, e eu não poderia ser mais grata pela amizade que tem demonstrado... mas hoje eu queria mesmo ficar sozinha, descansar, dormir e esquecer a última semana”. “Tudo bem, querida. Mas não se afunde. Seja forte, lembre-se que ainda é jovem, tem um tantão de coisas para viver... E um dia, quando for realmente a hora, esse bebezinho virá” – Mariana amaciou a voz, deixando de lado a animação forçada que vestiu para fazer o convite da tarde com bolo, e assumiu as vezes de irmã.
“Agora fique tranquila. Coma alguma coisa e durma. Durma porque é seu direito. Amanhã eu ligo de novo, quem sabe surge uma vontadinha daquele bolo, ãh?!”. Lidia suspirou enquanto acedia sem vontade: “Claro... Beijos e, mais uma vez, obrigada. Até amanhã”. “Até amanhã, querida! Beijãããooo.” – A mão sobre o telefone já no gancho, aquela mão trêmula e branca, muito branca e muito magra. Tanto, que os anéis eram como planetas de isopor engastalhados em finos fios de algodão, um planetário infantil. A mão repousada sobre o aparelho clamava um tanto de piedade. Mariana clamava um tanto de piedade.
Olhou para as unhas, carcomidas e nuas. Naquela quinta-feira, uma exceção em todas as outras de sua vida, tinha desmarcado o horário na manicure e passaria o dia inteiro em casa já que não visitaria Lidia. Havia dias a maldita dor de cabeça não cessava, mesmo tendo usado todos os analgésicos de sua caixinha de primeiros-socorros – que escondia também incontáveis tipos de calmantes e antidepressivos.
Os grandes anéis de pedra não combinavam em nada com aquela mão descuidada, desamparada, amedrontada. Uma mão que tantas vezes se impusera sobre mesas a apanhar para si o brilho das pratas, que tantas vezes fora beijada e ornada pelos mais diferentes admiradores, e que em tantas outras atribuiu-lhe ares de rainha – apenas pela delicadeza com que se moviam. Sim, Mariana sempre enaltecia a generosidade de Deus ao destinar-lhe mãos tão lindas, pequenas e suaves, “capazes de tornar adornos mais vistosos e esmaltes mais brilhantes”, como ela mesma gostava de repetir sempre que lhe convinha, talvez apenas para fazer inveja às outras menos afortunadas. Mas, a esta hora, as mãos eram medíocres.
“O que será que Lidia faria se soubesse?” – murmurava, de pé ao lado da mesinha de madeira que era de sua avó e que agora integrava a decoração da sala tão pós-moderna que chegava a ser retrô. “Ela nunca me perdoaria, com toda certeza... Imagina! Se um dia sonhasse que...” – Triiimmmm! Triiimmmm! O telefone tocou interrompendo o raciocínio autoflagelante de Mariana, que se jogou para trás enquanto olhava com horror a mão que antes pousava sobre o telefone, como se através dela os pensamentos encontrassem uma porta de saída, uma espécie de portal para o entendimento da pessoa do outro lado da linha. Atenderia? E se fosse Lidia, e tivesse mudado de idéia a fim de vê-la, a fim de saber de todos os segredos que Mariana vinha escondendo dela há tantos anos...?
Olhou fixamente para o aparelho e atendeu: “Alô? Quem fala?”. Do outro lado, a voz que parecia camuflada em uma multidão de outras vozes, tentava comunicar-se: “Mariana? Oi, Mariana! Aqui é o Carlos... Tá entendendo? O Carlos!” – Mas Mariana emudeceu. Não falaria com Carlos. “Poxa, Mariana, fala alguma coisa! Espere... Pronto, aqui tem menos gente, esse boteco é abarrotado o dia inteiro. Tá me ouvindo? Então, a gente precisa conversar sobre aquele assunto, não vai falar nada pra Lidia daquele assunto, entendeu?”. Não falaria com Carlos... “Olha, Carlos, por que acha que eu contaria qualquer coisa a ela?” – Mariana cedeu, talvez para esclarecerem de vez aquela história que a atormentara por tanto tempo, talvez para apagá-la para sempre.
“Ora, Mari, acha que eu não sei que, durante esses anos todos, tudo o que você mais queria era contar a história inteira para a Lidia? Se abrir de uma vez por todas, jogar tudo pro alto?” – acusava Carlos. “Claro que eu queria, e você sabe disso perfeitamente. Tudo aconteceu há muito tempo, e minha amizade com Lidia não é mais verdadeira depois disso. Eu não sou mais verdadeira depois disso. Não deveria guardar segredos dela... não esse tipo de segredo...” – a voz de Mariana diminuía a cada palavra, como se tentasse resguardar forças para a argumentação seguinte – “Mas por que você está me falando isso agora? Já não combinamos nunca falar disso? Acha que eu falaria alguma coisa agora, Carlos, justo agora?”, firmou o tom novamente.
“Claro que não falaria nada, Marizinha. Vocês são amigas, mas você é canalha antes de tudo. Nunca se colocaria em maus lençóis por causa de uma eticazinha comprada em revistas femininas. Você é esperta, querida. É isto que a faz tão atraente.” – Carlos ironizava, zombava dela. Sabia que isso irritava Mariana tanto quanto a deixava sem argumentos. Sim, porque ela nunca soubera contra-argumentar discursos irônicos ou sarcásticos. E nunca saberia. Pois Mariana era ela própria uma ironia, uma pessoa daquelas que nascem para zombar da vida. E, por não se conhecer, simplesmente não se entendia.
“Ah, Carlos, não me venha com essas palhaçadas. Foi um erro e só. Acabou, não acabou? Talvez Lidia entendesse...” – e não pode continuar, pois o homem a atropelou: “Mari, Marizinha! Você é sonhadora... Acha que a vida é como nas suas novelinhas? Você é muito previsível querida. Você é tão clichê!”. Mariana respirou profundamente e, antes de desligar o telefone, repetiu a frase que Lidia sempre dissera a ela em momentos em que não encontravam solução para seus problemas: “Mas, Carlito querido, a vida é cheia de clichês. Não sabe, não?”.*





*ESTE TEXTO, AQUI APRESENTADO COMO CONTO, INTEGRA O FOLHETIM "O ÚLTIMO TANGO" NO BLOGUE DA AUTORA.

Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com . Quer ver mais Contação? Clique AQUI!


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