A VIDA É CHEIA DE CLICHÊS
“Então está tudo bem mesmo,
Lidia?” – era Mariana ao telefone. Tentava não mostrar a preocupação sobre o
estado emocional da amiga – “Tem certeza que você está se sentindo melhor? Eu
posso dar uma passadinha aí, levo um bolo, você não sabe a delícia de bolo que
eu comprei ontem à tarde na La Boulangerie. Sabe aquela pertinho do
escritório? Bom, preciso mesmo conversar com você, queria ouvir uns conselhos,
sabe? O bolo é de chocolate e glacê, desde quando você recusa um bom glacê?”.
Mas Lidia só negava. Não
queria visitas, não desejava conversar, não ansiava pela pena de alguém. “Ai,
Mari, podemos marcar esse bolo pra outro dia? Eu sei que você está preocupada
comigo, e eu não poderia ser mais grata pela amizade que tem demonstrado... mas
hoje eu queria mesmo ficar sozinha, descansar, dormir e esquecer a última
semana”. “Tudo bem, querida. Mas não se afunde. Seja forte, lembre-se que ainda
é jovem, tem um tantão de coisas para
viver... E um dia, quando for realmente a hora, esse bebezinho virá” – Mariana
amaciou a voz, deixando de lado a animação forçada que vestiu para fazer o
convite da tarde com bolo, e assumiu as vezes de irmã.
“Agora fique tranquila. Coma
alguma coisa e durma. Durma porque é seu direito. Amanhã eu ligo de novo, quem
sabe surge uma vontadinha daquele bolo, ãh?!”. Lidia suspirou enquanto acedia
sem vontade: “Claro... Beijos e, mais uma vez, obrigada. Até amanhã”. “Até
amanhã, querida! Beijãããooo.” – A mão sobre o telefone já no gancho, aquela mão
trêmula e branca, muito branca e muito magra. Tanto, que os anéis eram como
planetas de isopor engastalhados em finos fios de algodão, um planetário
infantil. A mão repousada sobre o aparelho clamava um tanto de piedade. Mariana
clamava um tanto de piedade.
Olhou para as unhas,
carcomidas e nuas. Naquela quinta-feira, uma exceção em todas as outras de sua
vida, tinha desmarcado o horário na manicure e passaria o dia inteiro em casa
já que não visitaria Lidia. Havia dias a maldita dor de cabeça não cessava,
mesmo tendo usado todos os analgésicos de sua caixinha de primeiros-socorros –
que escondia também incontáveis tipos de calmantes e antidepressivos.
Os grandes anéis de pedra
não combinavam em nada com aquela mão descuidada, desamparada, amedrontada. Uma
mão que tantas vezes se impusera sobre mesas a apanhar para si o brilho das
pratas, que tantas vezes fora beijada e ornada pelos mais diferentes
admiradores, e que em tantas outras atribuiu-lhe ares de rainha – apenas pela
delicadeza com que se moviam. Sim, Mariana sempre enaltecia a generosidade de
Deus ao destinar-lhe mãos tão lindas, pequenas e suaves, “capazes de tornar
adornos mais vistosos e esmaltes mais brilhantes”, como ela mesma gostava de repetir
sempre que lhe convinha, talvez apenas para fazer inveja às outras menos
afortunadas. Mas, a esta hora, as mãos eram medíocres.
“O que será que Lidia faria
se soubesse?” – murmurava, de pé ao lado da mesinha de madeira que era de sua
avó e que agora integrava a decoração da sala tão pós-moderna que chegava a ser
retrô. “Ela nunca me perdoaria, com toda certeza... Imagina! Se um dia sonhasse
que...” – Triiimmmm! Triiimmmm! O telefone tocou interrompendo o raciocínio autoflagelante
de Mariana, que se jogou para trás enquanto olhava com horror a mão que antes
pousava sobre o telefone, como se através dela os pensamentos encontrassem uma
porta de saída, uma espécie de portal para o entendimento da pessoa do outro
lado da linha. Atenderia? E se fosse Lidia, e tivesse mudado de idéia a fim de
vê-la, a fim de saber de todos os segredos que Mariana vinha escondendo dela há
tantos anos...?
Olhou fixamente para o
aparelho e atendeu: “Alô? Quem fala?”. Do outro lado, a voz que parecia
camuflada em uma multidão de outras vozes, tentava comunicar-se: “Mariana? Oi,
Mariana! Aqui é o Carlos... Tá entendendo? O Carlos!” – Mas Mariana emudeceu.
Não falaria com Carlos. “Poxa, Mariana, fala alguma coisa! Espere... Pronto,
aqui tem menos gente, esse boteco é abarrotado o dia inteiro. Tá me ouvindo?
Então, a gente precisa conversar sobre aquele assunto, não vai falar nada pra
Lidia daquele assunto, entendeu?”. Não falaria com Carlos... “Olha, Carlos, por
que acha que eu contaria qualquer coisa a ela?” – Mariana cedeu, talvez para
esclarecerem de vez aquela história que a atormentara por tanto tempo, talvez
para apagá-la para sempre.
“Ora, Mari, acha que eu não
sei que, durante esses anos todos, tudo o que você mais queria era contar a
história inteira para a Lidia? Se abrir de uma vez por todas, jogar tudo pro
alto?” – acusava Carlos. “Claro que eu queria, e você sabe disso perfeitamente.
Tudo aconteceu há muito tempo, e minha amizade com Lidia não é mais verdadeira
depois disso. Eu não sou mais verdadeira depois disso. Não deveria guardar
segredos dela... não esse tipo de segredo...” – a voz de Mariana diminuía a
cada palavra, como se tentasse resguardar forças para a argumentação seguinte –
“Mas por que você está me falando isso agora? Já não combinamos nunca falar
disso? Acha que eu falaria alguma coisa agora, Carlos, justo agora?”, firmou o
tom novamente.
“Claro que não falaria nada,
Marizinha. Vocês são amigas, mas você é canalha antes de tudo. Nunca se
colocaria em maus lençóis por causa de uma eticazinha comprada em revistas
femininas. Você é esperta, querida. É isto que a faz tão atraente.” – Carlos ironizava,
zombava dela. Sabia que isso irritava Mariana tanto quanto a deixava sem argumentos.
Sim, porque ela nunca soubera contra-argumentar discursos irônicos ou
sarcásticos. E nunca saberia. Pois Mariana era ela própria uma ironia, uma
pessoa daquelas que nascem para zombar da vida. E, por não se conhecer,
simplesmente não se entendia.
“Ah, Carlos, não me venha com
essas palhaçadas. Foi um erro e só. Acabou, não acabou? Talvez Lidia
entendesse...” – e não pode continuar, pois o homem a atropelou: “Mari,
Marizinha! Você é sonhadora... Acha que a vida é como nas suas novelinhas? Você
é muito previsível querida. Você é tão clichê!”. Mariana respirou profundamente
e, antes de desligar o telefone, repetiu a frase que Lidia sempre dissera a ela
em momentos em que não encontravam solução para seus problemas: “Mas, Carlito querido, a vida é cheia de
clichês. Não sabe, não?”.*
*ESTE TEXTO, AQUI APRESENTADO COMO CONTO, INTEGRA O FOLHETIM "O ÚLTIMO TANGO" NO BLOGUE DA AUTORA.
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com . Quer ver mais Contação? Clique AQUI!
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário