O velho ônibus parou e o motorista
abriu a porta . Subi , segurando a alça de alumínio . Segui em frente .Mais um naquele
pandemônio .Carro lotado . Índios aculturados , aspirantes á garimpeiro
,garimpeiros ostentando um sorriso dourado , rostos vincados pelo sol e anos de
bateia. Pairavam cheiros de todo tipo , crianças choravam , um velho reclamava e
praguejava , ninguém entendia a sua ira cheia de cuspe e olhos vermelhos ,
injetados .
Arranjei um canto no fundo do carro e
aboletei – me.Ao meu lado, uma mulher morena , de idade indefinida, olhos
castanhos .Na cabeça , um lenço estampado evocava as longínquas calçadas de
Copacabana . No colo, uma velha bolsa de lona . Um ocasional olhar de soslaio ,
por cima dos ombros magros . Do rádio de alguém , Teixeirinha enlutava o
coração , de Amazônia afora . Que país ! Pensei nas últimas horas e nas estripulias
da guerrilha : quem não debandava , morria com tiro na cabeça, feito cachorro
doido , pelo Brasil grande , em nome da integração e integridade nacionais,
quem sabe, por Guevara , Mao, Trotsky , pelo socialismo, pelo declínio do
Ocidente , sabe-se lá mais por quem e por que .
Vinha já há dois dias fugindo do Araguaia, vivo
ainda, graças ao cadáver de Eriberto , tombando baleado sobre mim , numa
matança sádica e frenética. Sequer checaram os mortos. Aí , eu não seria o
único para contar a história .Alisei o bigode postiço e o ray-ban . Puxei o
chapéu sobre a testa. Camisa estampada , calça de brim : posseiro da cabeça aos
pés. O calor castiga e entorpece . Meu
cochilo precário e solavancado, termina por estancar num ponto , onde sobe
alguém vendendo refrigerante. Nunca o imperialismo ianque foi tão festejado :
bendita coca-cola de goela abaixo e volto ao torpor suado e trepidante naquele
fim de mundo. Do banco da frente , um garoto ri , dedinho em riste e desdentada
inocência:
- Mãe , o bigode do homem tá caindo ! O suor
tá desmanchando a cara dele !
- Cala a boca , menino ! Deixa o rapaz
cochilar – trovejou ao meu lado , a mulher de lenço.
Ajeito o bigode e enxugo o rosto na
manga da camisa . A mãe , um olhar frio e doloroso feito facada . O garoto ,
matraca fechada e vez por outra , um
olharzinho maroto para o rosto que parou de desmanchar-se.O sobe e desce do
ônibus é interrompido pela voz anasalada que
deu bom-dia e subiu no carro : um
jovem capitão do Exército , cara suada de b e b ê johnson
e olhinhos d e c a s c a v e l .Coturnos brilhantes , seguidos por três
soldados com cara de cachorro sem mãe , perdidos de arma na mão no meio do nada sobre
quatro rodas , vindo em minha direção. Bebezão continuou a falar . Na mão , um cartaz
com fotos de Terroristas Procurados.
_ Bom dia. Sou o Capitão Felisberto. Algum dos
presentes viu ou conhece alguém daqui ? – aponta o cartaz, o dedo manicurado e
lustroso. Um balançar de cabeças, um não generalizado, traz-me a respiração de volta
. No olhar de serpente , o chocalho do ódio :
- Olhem com cuidado...esse aqui ó,
Carlos Borromeu Linhares , o Téo , pode estar por aí, por perto .Escapou
fedendo, esse terrorista safado .Em São Paulo
, jogou um fusca cheio de bomba num quartel , matando um sentinela de serviço. Olhem bem ! – o
dedo lustroso cutucava a minha cara assustada da carteira de estudante.
Olhou os soldados, ordenou a descida
,saíram todos. Entraram num jipe , pegaram a estrada de Marabá. Brasil , ame –
o ou deixe – o . Impossível, de tão simples. Mais duas horas de viagem e
chegamos á Marabá. A parada do ônibus cheia de gente, em outras pessoas a mesma
cara de enfado e tristeza , a calma resignada dos velhos, dois gêmeos chupando
picolé. Escafederam-se a minha companheira de assento e seu garoto.
Nem sinal . Bem , e agora ? Sozinho, leve , muito leve,leve como a pluma, que fazer
senão pensar ? Atravesso a rua poeirenta, entro no bar do Miguel e peço uma
cachaça. No meio do gole, uma voz anasalada e já familiar me ordena erguer as
mãos.
2 comentários
Botei o pé, a imaginação e a alma nessa estrada. Daqui, deu pra sentir a poeira e o azedume dos anos de chumbo. Autobiográfico ou não, belo e sensível texto. Parabéns por mais este, André.
Marcelo : grato pelo olhar. Não é autobiográfico, não . No entanto,foi elaborado ( o conto) sobre alguns fatos reais.A bomba dentro do fusca realmente aconteceu ; escrevi na estrada apos concluir a leitura de As ilusões armadas, do Élio Gaspari , quatro volumes de vasta e imparcial pesquisa histórica , premiado inclusive pela ABL.Abraço.
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