domingo, 15 de julho de 2012

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Na estrada





O velho ônibus parou e o motorista abriu a porta . Subi , segurando a alça de alumínio . Segui em frente .Mais um naquele pandemônio .Carro lotado . Índios aculturados , aspirantes á garimpeiro ,garimpeiros ostentando um sorriso dourado , rostos vincados pelo sol e anos de bateia. Pairavam cheiros de todo tipo , crianças choravam , um velho reclamava e praguejava , ninguém entendia a sua ira cheia de cuspe e olhos vermelhos , injetados .

Arranjei um canto no fundo do carro e aboletei – me.Ao meu lado, uma mulher morena , de idade indefinida, olhos castanhos .Na cabeça , um lenço estampado evocava as longínquas calçadas de Copacabana . No colo, uma velha bolsa de lona . Um ocasional olhar de soslaio , por cima dos ombros magros . Do rádio de alguém , Teixeirinha enlutava o coração , de Amazônia afora . Que país ! Pensei nas últimas horas e nas estripulias da guerrilha : quem não debandava , morria com tiro na cabeça, feito cachorro doido , pelo Brasil grande , em nome da integração e integridade nacionais, quem sabe, por Guevara , Mao, Trotsky , pelo socialismo, pelo declínio do Ocidente , sabe-se lá mais por quem e por que .

 Vinha já há dois dias fugindo do Araguaia, vivo ainda, graças ao cadáver de Eriberto , tombando baleado sobre mim , numa matança sádica e frenética. Sequer checaram os mortos. Aí , eu não seria o único para contar a história .Alisei o bigode postiço e o ray-ban . Puxei o chapéu sobre a testa. Camisa estampada , calça de brim : posseiro da cabeça aos pés. O calor castiga e entorpece . Meu  cochilo precário e solavancado, termina por estancar num ponto , onde sobe alguém vendendo refrigerante. Nunca o imperialismo ianque foi tão festejado : bendita coca-cola de goela abaixo e volto ao torpor suado e trepidante naquele fim de mundo. Do banco da frente , um garoto ri , dedinho em riste e desdentada inocência:
 - Mãe , o bigode do homem tá caindo ! O suor tá desmanchando a cara dele !
 - Cala a boca , menino ! Deixa o rapaz cochilar – trovejou ao meu lado , a mulher de lenço.
Ajeito o bigode e enxugo o rosto na manga da camisa . A mãe , um olhar frio e doloroso feito facada . O garoto , matraca fechada  e vez por outra , um olharzinho maroto para o rosto que parou de desmanchar-se.O sobe e desce do ônibus é interrompido pela voz anasalada que  deu bom-dia e  subiu no carro : um jovem capitão do Exército , cara suada de b e b ê  johnson  e   olhinhos d e   c a s c a v e l  .Coturnos brilhantes , seguidos por três soldados com cara de cachorro sem mãe ,  perdidos de arma na mão no meio do nada sobre quatro rodas , vindo em minha direção. Bebezão continuou a falar . Na mão , um cartaz com fotos de Terroristas Procurados.
 _ Bom dia. Sou o Capitão Felisberto. Algum dos presentes viu ou conhece alguém daqui ? – aponta o cartaz, o dedo manicurado e lustroso. Um balançar de cabeças, um não generalizado, traz-me a respiração de volta . No olhar de serpente , o chocalho do ódio :
- Olhem com cuidado...esse aqui ó, Carlos Borromeu Linhares , o Téo , pode estar por aí, por perto .Escapou fedendo, esse terrorista safado .Em  São Paulo , jogou um fusca cheio de bomba num quartel , matando   um sentinela de serviço. Olhem bem ! – o dedo lustroso cutucava a minha cara assustada da carteira de estudante.

Olhou os soldados, ordenou a descida ,saíram todos. Entraram num jipe , pegaram a estrada de Marabá. Brasil , ame – o ou deixe – o . Impossível, de tão simples. Mais duas horas de viagem e chegamos á Marabá. A parada do ônibus cheia de gente, em outras pessoas a mesma cara de enfado e tristeza , a calma resignada dos velhos, dois gêmeos chupando picolé. Escafederam-se  a   minha companheira de assento e seu garoto. Nem sinal . Bem , e agora ? Sozinho, leve , muito leve,leve como a pluma, que fazer senão pensar ? Atravesso a rua poeirenta, entro no bar do Miguel e peço uma cachaça. No meio do gole, uma voz anasalada e já familiar me ordena erguer as mãos.





  




2 comentários

Marcelo Pirajá Sguassábia

Botei o pé, a imaginação e a alma nessa estrada. Daqui, deu pra sentir a poeira e o azedume dos anos de chumbo. Autobiográfico ou não, belo e sensível texto. Parabéns por mais este, André.

andre albuquerque

Marcelo : grato pelo olhar. Não é autobiográfico, não . No entanto,foi elaborado ( o conto) sobre alguns fatos reais.A bomba dentro do fusca realmente aconteceu ; escrevi na estrada apos concluir a leitura de As ilusões armadas, do Élio Gaspari , quatro volumes de vasta e imparcial pesquisa histórica , premiado inclusive pela ABL.Abraço.