quarta-feira, 8 de agosto de 2012

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O ANJO 14 - JANDIRA ZANCHI




14.

      E foram-se escorrendo os dias com seu líquido de leite frouxo, embaralhados em difuso sabor de mel e servidão. Ariane trazia uma tez macia e cristalina, desfeita a sombra dos olhos, muito indulgente de alegria e serenidade. A vida com Ângelo fizera essa transformação. Permitia-se amá-lo, maravilhando-se com sua beleza e emoção.
      A filha herdara alguma coisa do pai no físico e na alma. Poder-se-ia imaginá-la uma Ariane convertida à magnificência daquela vazia forma de formar-se pela grandiosidade da grande estrela. Seus gestos eram satisfeitos e jamais se detinha sobre a própria sombra. Em algumas noites, quedava-se Ariane muito cismada da ausência dos altos e baixos costumeiros que reinavam quando do silêncio da estrelas enquanto pai e filha, iluminados por uma lua amarela de bonomia, percorriam alguns livros, só extraindo deles a saúde das boas páginas.
      Excluindo-se, vazava para a noite e no jardim escolhia um recanto perfumado por uma grande árvore. Respirava o pranto do orvalho da grama próxima e deixava-se levar, lenta e laboriosamente, em direção ás baixas nuvens, que rumavam no céu seus confeitos de um estofo quase marítimo. Conferia como de bom consentimento a veracidade de que, ainda que regados à deriva do astro, se conferissem esses feitos à forma do Anjo. Se tais espetáculos fossem nulos é porque traziam presos, em algumas de suas frestas, os fascículos dos primeiros acordes da vida na Grande Nave.  E para ela era motivo de algum espanto quando, inclinando-se até o esperanto do sopro, verificou que o jardim fora concebido em momento de fecunda simplicidade, no primeiro sorriso de um Anjo, no grito cristalino de uma ave, no rumorejar cristalino de um filete de água. Não foram os grandes transtornos que compuseram o hino, mas seus traquejos traquinas, seus brindes de meninos, a liberdade dos espaços lineares.
       E Anjos, antes que seres enfiados e profusos de opulentas luzes, eram lentos e cheios de curvas e carnes e covinhas de delícias, os cachinhos de alpinistas, serenos e pequenos em suas Aves, uns querubins de muita imponência, fáceis e nunca amáveis, ataviados das fitas da Nave, um creme rútilo e pomposo, as linhas leves arriscando-se ao alto, presos do labor do Astro, seus confidentes.
      Ariane sentou-se com o marido e a filha e novamente folheou os livros. O tempo amarelara algumas páginas, mas percebeu-lhes a textura eloqüente, de finas camadas, com um éter enrodilhado de vida, ainda que breve.

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