quarta-feira, 29 de agosto de 2012

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O ANJO 17 - JANDIRA ZANCHI




17.

     Ariane soltava-se para a seguida sapiência de suas virtudes.  Desnudava-se, e rompida consigo naquelas virgens e imaculada ciência de tantos requisitos assistia da vida a sua rústica evidência. Ainda conseguia se deslumbrar com a imensidão das estrelas, suas armações cósmicas, o lento perfume dos invictos finais de tarde.
     O mistério cedia, mas, ainda, o encanto e o envolvimento do mapa da vida. Ângelo a seguia sem sobressaltos e, às vezes, a tocava com uma profundidade que a enternecia.  Quando o marítimo rumor de uma noite serena subiu até a varanda da bela casa sentaram-se em um banco de pedra para, aquecidos na mesma manta, deixaram-se sonhar. O véu da neblina desceu e um doce e sorumbático gosto de paz os cobriu.
     Ariane procurava o mais íntimo recanto de si e sondava-lhe a amplidão, aquela pré-ciência da alma eternizada em seu silêncio, imbuída da incolor ausência das suas deficiências. Lentamente uma alegria menina, de olhos fosforescentes, rósea estampa em suas fagulhas, segurou-a no seu sonho. Então, quando a cortina das nuvens dispersava-se, Ariane, com olhos desnudos de desejos, consultava-as. Guerreava-se? Tentava-se? Que dança era aquela que se espalhava em tantas formas, essa força rompida das trevas, agônica, sempre sonhada poesia de frio e paz, misto de espírito e alegria, amplidão e movimento... pensamento, poemas multicores de cada pequeno ser, poeira extraída de algum acaso.
- Haverá o dia em que saberemos quem somos, Ângelo ?
     Ele olhava-a e sorria, balançando lentamente a cabeça. Ariane, para esse anjo, nunca mudaria. Embalada em seu romantismo, para sempre colheria flores brancas, nascidas de uma geada fria, fornecida nos ventos, insolventes, das longas madrugadas. O Belo, porém, estremeceu, pois assim sendo, temia amá-la, desvanecer aos seus pés mais do que devia, já que a forma soberana, a essência inspiradora da dança e sua possibilidade não poderiam enamorar-se da alma, de suas práticas tão envaidecidas de éter.
     Se Ariane mirava uma miragem e só dessa frívola estiagem existisse, era então muito ampliada e exigente.  Em algum momento percebera o fio e o elo da luta, da grandiosidade equívoca e movia-se dessa sina, pingada do fresco do orvalho na súplica do que ainda não se movia, do que se apertava em estiagem.
     Enfim, Ângelo percebia a extensão dos vítreos olhos da amada, da sua ressonância com os furiosos ventos das vertigens cósmicas. E mirou os movimentos vidrilhos à vácuo e vapor das soberbas árvores do grande bosque. Sugou-lhes o vomitado éter aspirado das profundidades da terra. Cismou das muitas facetas e disponibilidades dos grandes silêncios nos desérticos pastos de gelo ou calor. Compreendeu porque o espírito que levantou o leme não era aquele que se movia em conformidade com o astro, esse fulgor que lhe ditava tanta elasticidade.
     Era ditado do frio o Condutor da Nave. Ardido de azul e pousado no coração da mata, elevando o cântico dos ausentes e do recolhimento. Era esse que percebera o âmago de sua finitude e de seu infinito.  Para esse a sombra não era um senão e um equívoco, antes a árdua verdade da consciência. Arma e arranjo, vez ou outra abreviada pelo vôo no tempo e na imagem.
     Ângelo cedeu e houve aquela manhã em que os lírios acordaram abertos na intermediação do outono. Beijou as mãos da mulher, evitando-lhe o olhar.
- Que tens, Ângelo ?
- Prossigo o meu caminho. Cada um tem o seu.
- Percebo. Está quieto o teu coração. Ariane inibiu-o, pois não ?
- Ariane é maior do que eu, e por amá-la e não saber como escorrer as lágrimas desse destino, quase penso em me despedir. A forma é ditada segundo a soberba da expansão e irradiação. Não pode falhar esse desígnio. A alma, que conhece fluídos de almíscar e o leite das folhas que se despedaçam no suor do inverno, de muito a supera em complexidade. Todavia não pode ser a regra de ouro do mundo, porque se alarga em água e ar, reclina-se no topo. É a sina do ser, consciência e inconsciência, dança de sentidos, sensorial e sensível. Inclino-me para o esplendor de tua coragem, mas não posso oferecer-te o esteio do lar.  Sim Ariane, é teu o cajado e a vírgula da virtude. Deixe que retorne o Anjo ao altar e beija-o. Lá, dourado e sem súplicas, reinará na forma e na benção dos frutos, forneça o invisível e aspire, sem atrito, tanto a saúde, como o esquecimento. Não existe medida ou métrica para o que sabes.
     O Sol, imponente, deixava o mar e o céu parecerem uma única redoma. Levava as perguntas e as réplicas para o passado. Os tempos seguiam-se, contados ou nem tanto, resguardados ou completos de gerações. Havia, sim, um movimento que de tanto verificar-se, acabaria por compreendê-lo. Todos os armados dessas velas viveriam. E abririam asas de pétalas, sem lacunas, aspirados e convertidos em cada destinação. 

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