17.
Ariane soltava-se para a seguida sapiência
de suas virtudes. Desnudava-se, e
rompida consigo naquelas virgens e imaculada ciência de tantos requisitos
assistia da vida a sua rústica evidência. Ainda conseguia se deslumbrar com a
imensidão das estrelas, suas armações cósmicas, o lento perfume dos invictos
finais de tarde.
O mistério cedia, mas, ainda, o encanto e
o envolvimento do mapa da vida. Ângelo a seguia sem sobressaltos e, às vezes, a
tocava com uma profundidade que a enternecia.
Quando o marítimo rumor de uma noite serena subiu até a varanda da bela
casa sentaram-se em um banco de pedra para, aquecidos na mesma manta, deixaram-se
sonhar. O véu da neblina desceu e um doce e sorumbático gosto de paz os cobriu.
Ariane procurava o mais íntimo recanto de
si e sondava-lhe a amplidão, aquela pré-ciência da alma eternizada em seu
silêncio, imbuída da incolor ausência das suas deficiências. Lentamente uma
alegria menina, de olhos fosforescentes, rósea estampa em suas fagulhas,
segurou-a no seu sonho. Então, quando a cortina das nuvens dispersava-se,
Ariane, com olhos desnudos de desejos, consultava-as. Guerreava-se? Tentava-se?
Que dança era aquela que se espalhava em tantas formas, essa força rompida das
trevas, agônica, sempre sonhada poesia de frio e paz, misto de espírito e
alegria, amplidão e movimento... pensamento, poemas multicores de cada pequeno
ser, poeira extraída de algum acaso.
- Haverá
o dia em que saberemos quem somos, Ângelo ?
Ele olhava-a e sorria, balançando
lentamente a cabeça. Ariane, para esse anjo, nunca mudaria. Embalada em seu
romantismo, para sempre colheria flores brancas, nascidas de uma geada fria,
fornecida nos ventos, insolventes, das longas madrugadas. O Belo, porém,
estremeceu, pois assim sendo, temia amá-la, desvanecer aos seus pés mais do que
devia, já que a forma soberana, a essência inspiradora da dança e sua
possibilidade não poderiam enamorar-se da alma, de suas práticas tão
envaidecidas de éter.
Se Ariane mirava uma miragem e só dessa
frívola estiagem existisse, era então muito ampliada e exigente. Em algum momento percebera o fio e o elo da
luta, da grandiosidade equívoca e movia-se dessa sina, pingada do fresco do orvalho
na súplica do que ainda não se movia, do que se apertava em estiagem.
Enfim, Ângelo percebia a extensão dos
vítreos olhos da amada, da sua ressonância com os furiosos ventos das vertigens
cósmicas. E mirou os movimentos vidrilhos à vácuo e vapor das soberbas árvores
do grande bosque. Sugou-lhes o vomitado éter aspirado das profundidades da
terra. Cismou das muitas facetas e disponibilidades dos grandes silêncios nos
desérticos pastos de gelo ou calor. Compreendeu porque o espírito que levantou o
leme não era aquele que se movia em conformidade com o astro, esse fulgor que
lhe ditava tanta elasticidade.
Era ditado do frio o Condutor da Nave.
Ardido de azul e pousado no coração da mata, elevando o cântico dos ausentes e
do recolhimento. Era esse que percebera o âmago de sua finitude e de seu
infinito. Para esse a sombra não era um
senão e um equívoco, antes a árdua verdade da consciência. Arma e arranjo, vez
ou outra abreviada pelo vôo no tempo e na imagem.
Ângelo cedeu e houve aquela manhã em que
os lírios acordaram abertos na intermediação do outono. Beijou as mãos da
mulher, evitando-lhe o olhar.
- Que
tens, Ângelo ?
-
Prossigo o meu caminho. Cada um tem o seu.
-
Percebo. Está quieto o teu coração. Ariane inibiu-o, pois não ?
- Ariane
é maior do que eu, e por amá-la e não saber como escorrer as lágrimas desse
destino, quase penso em me despedir. A forma é ditada segundo a soberba da
expansão e irradiação. Não pode falhar esse desígnio. A alma, que conhece
fluídos de almíscar e o leite das folhas que se despedaçam no suor do inverno,
de muito a supera em
complexidade. Todavia não pode ser a regra de ouro do mundo,
porque se alarga em água e ar, reclina-se no topo. É a sina do ser, consciência
e inconsciência, dança de sentidos, sensorial e sensível. Inclino-me para o
esplendor de tua coragem, mas não posso oferecer-te o esteio do lar. Sim Ariane, é teu o cajado e a vírgula da
virtude. Deixe que retorne o Anjo ao altar e beija-o. Lá, dourado e sem
súplicas, reinará na forma e na benção dos frutos, forneça o invisível e
aspire, sem atrito, tanto a saúde, como o esquecimento. Não existe medida ou
métrica para o que sabes.
O Sol, imponente, deixava o mar e o céu
parecerem uma única redoma. Levava as perguntas e as réplicas para o passado.
Os tempos seguiam-se, contados ou nem tanto, resguardados ou completos de
gerações. Havia, sim, um movimento que de tanto verificar-se, acabaria por
compreendê-lo. Todos os armados dessas velas viveriam. E abririam asas de
pétalas, sem lacunas, aspirados e convertidos em cada destinação.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário