Pra
ler ao som de Space-Dye Vest,
pela
idealização,
e de
Canção pra Não Voltar,
pela
inexistência.
Abri os olhos porque já tinham ficado fechados tempo demais.
Puta que pariu!, a voz ecoou no vazio do quarto, três da tarde! Puta que,
puta que pariu!, enquanto eu tropeçava ao levantar da cama, muito sol pela
janela aberta entrando a me ferir os olhos acostumados demais ao escuro do
sono. E eu esbarrando nas coisas do quarto, apenas formas sem nome – uma quina
pontiaguda, outra, um algo pequeno que derrubei no chão, superfícies lisas na
boca do estômago, outras ocas nos dedos dos pés doendo. Puta que pariu!
Cara na porta.
Não, não. Parede.
Parei.
Abri os olhos devagar após a pancada, a cara doída da parede crespa, a pele
marcada da batida. Com calma, recobrei a calma e retomei a visão. Ora che ho
perso la vista, ci vedo di piú. O claro ia parando de doer e vi o quarto.
Penetrado de sol às três da tarde de fevereiro. Mais dois meses de trabalho e
eu tiraria trinta dias de férias, pensei. Talvez vendesse dez pra empresa e
tirasse uma pouca grana a mais. Mas eu não tinha por que ganhar dinheiro. Eu
não tinha com o que gastar dinheiro. Eu não tinha nada.
Eu não tinha mais emprego.
Desde o dia anterior eu não tinha mais emprego.
Suspirei com o corpo todo num alívio que me escorregou costas na parede
até sentar no chão de tacos de madeira do único quarto do meu apartamento.
Vitória!, disse em voz alta. Vitória, você não tem mais emprego!,
continuei dizendo em voz alta. E rindo da ironia do meu nome. Vitória, você não
tem nada, Vitória.
No chão, o frio do piso que não era piso frio me esfriava a pele. A
parede crespa nas costas nuas me encrespava a pele das costas nuas. Eu estava
nua no meio do vazio do quarto, que tinha se tornado, tal qual o resto do
apartamento, um depósito dos meus inúteis pertences, minhas inutilidades
apaixonadas:
meu violão velho de guerra, que eu usei pra ensinar o Júlio a tocar,
muitos livros,
discos de vinil – eu era uma pessoa antiga,
a máquina de escrever verde-claro que o antigo dono do apartamento
esqueceu de levar,
aquele caderno velho e molhado: “Qual é o seu nome? Me diz o seu
nome...”, “Vitória”,
meu celular ultrapassado que eu só achava quando telefonavam, e nunca
telefonavam.
Eu não tinha ninguém.
Eu tinha sim umas almofadas indianas, que estavam na moda, pôsteres do
Freddie Mercury, alguns filmes especiais, Sociedade dos Poetas Mortos, O Enigma
de Kaspar Hauser entre diversos etceteras. O meu quarto era cheio, mas o meu
mundo era vazio.
Fiquei sentada em meio ao vazio, desempregada e nua, com um futuro branco
pela frente a não cumprir. Eu tinha mais de trinta, trinta e cinco actually, e
não tinha nada. Nem me espantava mais. Eu não tinha dado certo e a desculpa da
juventude já não funcionava. Meus amigos tinham ficado no passado. E deviam estar
bem. Isabel casou, não fui. Júlio também, também não fui. Não sabia mais do
Eduardo, irmão do Júlio, mas ele tinha ido pro exterior. Devia ter dado certo
também. E ele... (Mas ele quem?) Que importava?, devia ser mais um pra lista. E
eu era um fracasso, sempre insone de café ou bêbada sonolenta, envelhecendo no
meio de escombros, fumaça e umidade.
E agora ócio.
Minha vida era um livro em branco com a página de ontem arrancada de
inlembranças e lacunas e carências e parênteses vazios. E o gosto de álcool preenchendo
os vazios. E a ressaca, again and again and again and again, como numa música
de Autumn Tears, ou uma surra do Ginosaji.
Eu odiava o meu emprego, aquele que eu já não tinha, I really wanted to
quit, pensei com sotaque, mas a demissão feria o meu ego. Eu!, repeti alto, Eu,
eu, eu! Era eu que devia ter me mandado de lá!
Então, cansada demais pra continuar pensando, enjoada demais pra
continuar falando, disse em voz alta assim: Fuck off! Vitória!
Eu tinha desejado tanto aquele letargo sem obrigação que não sabia como
começar a aproveitar aquela vastidão de ócio. Parada nua no quarto, eu segurei nas
mãos o presente do Papai Noel, que a criança ainda não sabe que a mãe abriu
prestação pra comprar. No ápice do meu aborrecimento de escritório, dias
inteiros após dias inteiros, eu me pegava pensando: I really wanna quit! E
dizendo pra mim mesma: Faz um pedido, Vitória, que eu atendo.
Bingo! Meu Papai Noel interior tinha, afinal, funcionado bem e, dois
meses depois do Natal, cá estava o presente.
Eu não tinha mais emprego.
Mas, depois da felicidade de ter sido atendida a cartinha (no meu caso,
felicidade comemorada no dia anterior com um belo porre de esquecer tudo e vomitar
a alma no tapete persa da sala), aquela vontade de devolver o pedido, de nunca
tê-lo pedido, vinha subindo. Eu não sabia por onde começar a curtir o vazio, a
expurgar de mim a vontade do vazio. Desde o estômago até a garganta vinha
subindo a vontade de devolver o presente vazio ao Papai Noel.
Então vomitei.
Na cara do Papai Noel.
2 comentários
Milena,
Uma Narrativa Encorpada e Intensa: Genial!
"Meu Papai Noel interior tinha, afinal, funcionado bem..."
Fico Aguardando Ansioso pela Sua Continuação.
Um Beijo! Jorge
Olá, Jorge.
Mais uma vez, agradeço pela leitura, pelo comentário, pelo carinho.
Um forte abraço,
Milena.
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