Ela sempre tinha estado lá, mas naquela época eu não sabia dela. E era
por isso que tudo estava em paz. Era manhã de julho em Paraty quando levantei
da cama antes das sete e estava sol. E estar sol naqueles dias era uma surpresa
boa, porque naqueles dias de julho havia sempre o vento frio vindo do mar e o
vento também frio vindo da serra. O horizonte era sempre cinza e chovia, e o
cinza rouba a magia do horizonte de Paraty.
Eu não sou de Paraty, sou do Rio de Janeiro, mas pareço de São Paulo.
Fadado ao parecer ser e ao realmente ser de grandes metrópoles. Os cabelos são
dourados, pensou ela quando a tive, e deixei crescer depois de me exilar em
Paraty. Antes eram curtos, como o meu horizonte entrecortado de prédios do
lugar de onde eu vim. Minhas unhas são roídas e encravadas nas mãos brancas,
porque tenho a pele muito branca. Por andar sempre de preto, hábito antigo, e
ser branco demais, como um fantasma, chamo atenção na cidade pra onde fugi das
grandes metrópoles que me feriam por dentro com seus barulhos e crueldades. Agora,
mesmo agora, depois de tantos anos aqui, ainda chamo atenção. Sempre acham (ingenuidade
quase interiorana) que eu estou de luto eterno. Talvez conjeturem
romanticamente um amor eterno. O que não seria falso. E essas suspeitas sobre
mim também devem chamar atenção, já que somos, em parte, o que somos e, em
outra grande, muito grande parte, o que inventam e constroem e querem e fazem
de nós.
Não combino com o verde do mar e com o verde da serra e com o azul do céu
e o branco da areia nos dias de sol. Deve ser isso, não sou parte da paisagem –
vê-se que eu não sou daqui. Combino sim com as pedras irregulares das calçadas
do centro histórico, e com o horizonte cinza e sem magia dos dias de julho em
Paraty. Talvez porque também eu não tenha magia alguma. Principalmente depois
de saber dela.
De saber que não se tem poder sobre a criação.
E que não se pode prender um dragão.
(Rima pobre.)
Acordei cedo naquele dia porque não conseguia mais dormir. Da minha
janela, ouvi o jovem rapaz tocando seu violão e fumando seu cigarro, como todos
os dias. Então me levantei e quis sair.
Estranho falar de mim por mim, porque sempre falo de mim pelos que saem
de mim. Sou escritor – acho que isso sempre explica tudo na minha pessoa. A
excentricidade do artista diz muito por aqui onde eu vivo. Qualquer uma das
minhas estranhezas se explica por esse subterfúgio. Tudo se explica por eu ser
escritor.
Meu nome é Jaime. Gosto de dizer: meu nome é Jaime, Jaime Cabral, como um
tipo de James Bond. Jaime Cabral Lage, na verdade, e nunca escolhi que
sobrenome adotar.
Isso não merecia ser contado.
Eu não merecia ser contado.
Não há nada de especial em mim que mereça ser contado.
Ainda assim, quando escrevo, é de mim que eu falo, daquilo que quis ser e
não fui, do que desejei e não tive, do que passei e do que espero que advenha. Eu
escrevo ainda, mesmo depois de tudo o que quero contar agora. Escrevo pra
tentar não morrer, não enlouquecer, não gritar. Pra tentar tornar a vida real.
Pra ser o que não fui, possuir o que não tive, consertar o que passou e transformar
o que há de vir.
Falo de mim por eles. Eles deixam. Ela deixou.
Quando eu era novo, eu queria ser o Steve Perry. Eu não queria ser
cantor, queria ser o Steve Perry. Eu também queria ser muitas coisas que não
fui, assim como, é claro, nunca consegui ser o Steve Perry. Então virei
escritor, pra mentir a vida. E poder sentir que fui tudo. Até o Steve Perry.
Mas disso tudo só me lembrei depois.
Eu sou escritor, eu dizia, ganhei uns prêmios importantes lá pelos meus
trinta anos, ainda no Rio. Escrevi desde cedo, desde muito novo, mas sempre
tive um certo horror pela escrita – e sempre tive uma certa queda pelo que me
causa horror –, que eterniza quem fomos mesmo depois de já nos termos
transformado e nos desnuda a completos desconhecidos, mostrando-lhes nossas
falhas passadas, nossos ideais mortos, dos quais nos envergonhamos. Por isso, e
porque afundo demais no universo da minha criação, sempre prefiro esquecer um
livro que passou. Emergir daquele universo novo que inventei. Enterrar os seres
que o povoam como os titãs no Tártaro, sem direito a titanomaquias. Faço
questão sempre de apagar quase por completo da memória aquilo que escrevi
depois que me saiu. Dou a liberdade ao destino daqueles que criei, desde que
fiquem longe, muito longe da minha vida.
Meu autoexílio em Paraty não me impediu de continuar escrevendo e
ganhando prêmios e ficando conhecido no país e fora. O mundo é pequeno agora,
está na moda dizer. E é. Mas tinha pelo menos cinco anos que nada me ocorria quando
daquela manhã de julho com sol. Cinco anos vivendo de encomenda, de prefácios e
críticas e bicos em jornais e revistas do meio, essas que ninguém lê a não ser os
caras do meio, esses que se batem e se bicam por um espaço nas revistas do
meio, escritas por gente do meio e lidas somente por gente do meio. Eu era um
operário literário do meio.
De resto, tudo o que eu escrevia eu tinha vontade de rasgar. Algumas
coisas eu rasguei mesmo, outras guardei por pena. Mas nada que eu julgasse bom,
embora eu ache que, se eu guardei, foi por julgar bom, mesmo sem compreender
talvez o que estivesse dito. Porque eu sempre escrevo muitas coisas que eu não
sei.
Naquela manhã de julho, saí pro sol, sentei na madeira molhada do píer, de
onde ouvi, ao longe, o jovem rapaz a tocar violão. Caminhei na beira da praia
com os pés descalços (pássaros ao fundo e ondas do mar embalam a cena), subi ao
forte acompanhado por um cão que tinha gostado da minha companhia e que eu
nunca mais vi na cidade, nem havia visto antes daquela manhã. De lá de cima, vi
toda a praia, e o mar que batia nas pedras lá embaixo e alcançava as ilhas e se
derramava no horizonte. Desci até as pedras, mergulhei de roupa e tudo e
alcancei a praiazinha escondida e cheia de conchas aonde só se chega nadando.
Recolhi algumas conchas e guardei no bolso, sem a esperança de continuar
ouvindo o ruído do mar quando eu voltasse pra casa.
Sempre gostei muito de recolher conchas, sobretudo enquanto eu ainda
vivia na cidade grande e cosmopolita de onde eu vim. Talvez eu quisesse prender
o mar comigo, escutá-lo dentro das conchas, mesmo depois de a escola me dizer
que isso era só acústica. Enchi potes pequenos a princípio, que foram se
tornando cada vez maiores, cheios de conchas de todas as cores.
Mas não se pode prender o mar.
E daquela praiazinha escondida, então, eu vi.
Uma criança, muito, muito pequena, andando com os pais. Ela era muito
pequena a criança, descendo as pedras do forte segurada pelas mãos dos pais.
Era uma menina de olhos verdes, muito verdes (eu via), que tentava soltar as
mãos dos pais pra mergulhar na água a qualquer custo.
Mas ela era muito, muito pequena. Achei que, se mergulhasse, podia se
afogar, de tão pequena que era.
Ela olhou pra mim por um curto segundo. Depois, num movimento ágil como
só uma criança muito viva sabe ter, se soltou e se jogou.
Ainda ouvi a mãe gritar seu nome, só depois eu lembraria qual. Na mesma
hora me joguei também e fui em busca da menina tão pequena. Achei-a de baixo
d’água não muito tempo depois. Nadando. Me olhou no fundo dos olhos, os dela
verdes e ainda mais verdes dentro do verde do mar, os meus tão negros que nem
mesmo na maior das luzes se veria a pupila. Percebi, então, enquanto ela
nadava, que ela nunca tinha precisado de ajuda. Ela não precisava de salvação.
E ela sabia disso. Sempre saberia disso. Mesmo que não fosse verdade.
Ela nadava. Agarrei-a por baixo dos braços num impulso, mas eu já sabia que
de mim ela não precisava também. Nem de mais ninguém, pensei. Trouxe-a à tona
no colo. Ela me olhou, os olhos fundos, sem alma, e muito vivos. E ela me disse
que.
Devolvi-a aos pais, que me agradeceram muito. Me ofereceram pagamento,
café, cachaça da loja que eles tinham no centro histórico, da boa, bem forte,
quem sabe um licor. Eles não deviam saber que eu não merecia nem agradecimento,
nem pagamento, nem cachaça, nem licor. Eu não tinha feito nada. A filha deles,
eles não deviam saber, não precisava de salvação. Nem de ninguém.
Voltei pra casa, dispus as conchas uma a uma nos potes cheios de outras
conchas, coloquei a esmo uma delas perto do ouvido. E o som que saiu de lá era
verde, fundo, sem alma, vivo. O rapaz tocava seu violão, You make me weep, lá fora
da minha janela.
E o que eu comecei a escrever não era um começo. E eu escrevi assim:
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