Tempos atrás publiquei neste espaço matéria semelhante a esta.
Retomo-a agora, pois se tornou mais atual do que antes, após a
Rio+20. O grande tema da Conferência da ONU era Que futuro queremos.
O documento final, entretanto, não nos fornece o mapa nem os meios de
percorrê-la. Ele é medroso, sem ambições e sem sentido ético e
espiritual da história humana. Refém de uma visão reducionista e até
materialista da economia, não forjou um novo e necessário software social
e civilizacional que nos desse esperança de um futuro que não fosse
simplesmente o prolongamento do passado e do presente. Este deu tudo o
que tinha que dar. Levá-lo teimosamente avante é empurrar-nos para a
borda de um abismo que se abre lá na frente, num tempo não muito
distante.
Há um complexo de crises em curso, particularmente a do
aquecimento global, da insustentabilidade do planeta Terra e
ultimamente da econômico-financeira, atingindo o coração dos países
opulentos, sem saber como saírem dela. Há ainda o crescimento do número
de pobres e miseráveis que em 2008 eram 860 milhões e que agora, devido à
crise global, passaram a um bilhão e duzentos milhões. Muitos analistas
desenham cenários dramáticos para o próximo futuro da Terra e da
Humanidade. Há uma guerra total, movida contra a Terra viva (Gaia) pelas
elites mundiais e pelas megaempresas multilaterais, pela forma como
produzem e acumulam, pondo em risco o sistema-vida e o
sistema-civilização. Há poucas chances para uma paz duradoura e uma
globalização solidária.
Tudo isso nos suscita uma angustiante pergunta: que virá depois da Rio+20?
Façamos
algumas constatações. Nos últimos anos, consolidou-se a aldeia global;
ocupamos praticamente todo o espaço terrestre e exploramos a natureza
até os confins da matéria e da vida, com a utilização da razão
instrumental-analítica; ocorreu um processo de acumulação capitalista
como nunca antes da história; um pequeno grupo de megaempresas controla
grande parte da economia mundial e através dela a política e as
informações. Estamos no coração de uma crise de civilização sem
precedentes, dado o seu caráter global.
Perguntamo-nos: e agora o
que virá? Mais do mesmo? Mas isso é muito arriscado, pois o paradigma
atual está assentado sobre o poder como dominação da natureza e dos
seres humanos. Não devemos esquecer que ele criou a máquina de morte,
que pode destruir a todos nós e a vida de Gaia. As virtualidades
construtivas deste caminho parecem ter-se esgotado, embora ele seja
ainda dominante.
Do capital material somos forçados passar ao
capital espiritual. O capital material tem limites e se exaure. O
espiritual é infinito e inexaurível. Quanto mais se usa, mais cresce e
se expande. O capital espiritual é feito de amor, de compaixão, de
cuidado, de criatividade, realidades intangíveis e valores
infinitos. Este foi parcamente aproveitado por nós. Mas ele pode
representar a grande alternativa que supera a crise atual e inaugura um
novo patamar civilizatório.
A centralidade do capital espiritual
reside na vida, na Humanidade e na Terra viva. Busca criar as condições
para as liberdades substantivas, como queria o Prêmio Nobel de Economia
Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade), que permite às
pessoas humanas moldarem sua vida e destino, realizarem sua autonomia e
viverem numa sociedade “menos malvada” (Paulo Freire), na qual seja
menos difícil o amor, a compaixão, o cuidado para com a nossa Casa
Comum, na alegria de viver e na capacidade de transcendência.
Não
significa que tenhamos que dispensar a tecnociência. Sem ela não
atenderíamos às demandas humanas. Mas ela não seria mais destrutiva da
natureza e da vida. Se no capital material a razão instrumental era seu
motor, no capital espiritual é a razão cordial e sensível que organizará
a vida social e a produção consoante os ciclos da natureza e dentro dos
limites de cada ecossistema. Na razão cordial estão radicados os
valores e os grandes ideais dos povos e de cada pessoa; dela se alimenta
a vida espiritual, pois produz as obras do espírito que referimos
acima: o amor, a solidariedade e a transcendência.
Usando uma
metáfora do grande escritor irlandês convertido C. S. Lewis diria: se no
tempo dos dinossauros houvesse um observador hipotético que se
perguntasse pelo próximo passo da evolução, provavelmente diria: o
aparecimento de espécies de dinos ainda maiores e mais vorazes. Mas ele
estaria enganado. Sequer imaginaria que de um pequeno mamífero que vivia
na copa das árvores mais altas, alimentando-se de flores e de brotos e
tremendo de medo de ser devorado pelos dinossauros, iria irromper,
milhões de anos depois, algo absolutamente impensado: um ser de
consciência e de inteligência — o ser humano — com uma qualidade
totalmente diferente daquela dos dinossauros. Não foi mais do mesmo. Foi
uma ruptura. Foi um passo diferente.
Cremos que o grande legado
da crise global sob a qual padecemos seja a percepção de que o capital
material não satisfaz os anseios fundamentais do ser humano. Este tem
fome de quê, além da fome de pão sempre saciável? Tem fome de
reconhecimento, de dignidade, de amar e de ser amado, de alegria de
viver e de transcendência, fome que irrompe como insaciável e sempre
presente em sua existência. Agora poderá surgir um ser humano marcado
pelo inexaurível capital espiritual. Agora prevalece o mundo do ser mais
que o mundo do ter.
O próximo passo, então, seria exatamente
este: descobrir o capital espiritual e começar a organizar a vida, a
produção, a sociedade e o cotidiano a partir dele. Então a economia
estará a serviço da vida, e a vida se imbuirá dos valores das relações
abertas e inclusivas, da mutualidade ser humano-Terra, da
autorrealização e da alegria — uma verdadeira alternativa ao paradigma
vigente.
Mas este passo, fundador do novo, não é mecânico. É
resultado de uma coligação de forças ao redor de valores e princípios
assumidos por todos, biocentrados e ecoamigáveis. Quer dizer, ele é
oferecido à nossa liberdade. Podemos acolhê-lo como podemos também
recusá-lo. Mas, mesmo recusado, ele permanece como uma possibilidade
sempre presente e pronta a irromper. Ele não se identifica com nenhuma
religião. É algo anterior, que emerge das virtualidades daquela Energia
de fundo, poderosa e amorosa, que sustenta todo o universo, a cada um de
nós, e que penetra em toda a evolução consciente. Quem o acolhe
viverá outro sentido de vida, vivenciará também um novo futuro,
diferente daquele imaginado pela Rio+20. Os outros dentro do velho
paradigma continuarão sofrendo os impasses do atual modo de ser e se
perguntarão, angustiados, pelo seu futuro e até pelo eventual
desaparecimento da espécie humana.
Foi Pierre Teilhard de Chardin que, ainda nos anos 30 do século 20, teve o sonho da irrupção da noosfera. Noos em grego significa a mente e o espírito totalmente abertos e unidos. A noosfera seria
a irrupção da humanidade como espécie, da mente e do coração
sincronizados e batendo em uníssono. Seria a etapa nova da
antropogênese, a superação do antropoceno, a inauguração da era
ecozoica e uma idade também nova de Gaia. Uma utopia? Sim, mas uma
utopia necessária para dar rumo às nossas buscas e manter vivo um
horizonte de esperança.
Estimo que a atual crise mundial nos criou a possibilidade de realização da noosfera. Dizem
por aí que Jesus, Buda, Francisco de Assis, Rumi, Gandhi, dom Hélder
Câmara, irmã Dorothy e tantos outros mestres e testemunhas do passado e
do presente teriam, antecipadamente, dado já esse passo. Eles são nossas
estrelas-guia, os alimentadores de nosso princípio-esperança e a
garantia de que ainda temos futuro. As dores atuais não seriam
estertores de uma civilização moribunda mas os sinais de um parto de um
novo modo sustentável de viver e de habitar o nosso planeta Terra.
Seremos humanos, reconciliados conosco mesmos, com a Mãe Terra e com a
Última Realidade. Este parece ser o sentido do universo e o propósito
do Criador.
Como disse sugestivamente uma de nossas melhores
pensadoras dos novos paradigmas, Rose Marie Muraro: “Quando desistirmos
de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos
o que é, mas que já o tínhamos intuído desde sempre”.
*Leonardo Boff, teólogo e filosofo, é escritor e um dos redatores da Carta da Terra.
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