sábado, 15 de setembro de 2012

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Nanook


O olhar castanho fitou-me diretamente.Um ganido lento e baixo , acompanhando um girar agitado da cabeça peluda , fez-me abrir a porta de saída da casa. Passei as mãos pelo rosto,senti a barba espetando a pele fria e lisa .Bebera uma xícara de café , comera pouco mas sentia o estomago cheio e pesado. As arvores que circundavam a casa tinham quase a minha idade. Meu pai as plantara quando eu começara a andar, aos dez meses de vida .
Ainda existiam as fotos emolduradas , na sala de jantar: a plantação das mudas pelo meu pai, em manhãs ensolaradas ; as plantas seguras por minha mãe e ele agachado, concluindo as covas onde virariam árvores.O cigarro pendente do lábio inferior;os dedos escuros de terra e nicotina ,em preto e branco, segurando uma muda á frente da câmera; minha mãe sempre sorridente . Eram jovens , casados há apenas dois anos ; amparado por minha mãe , eu olhava curioso o chapéu safári do meu pai , risonho e suado. As serras ao longe, completavam um quadro belo e estival, junto á alegria deles por estar ali, fazendo o que mais gostavam naquele tempo .
Hoje, as árvores abraçavam o chalé , como planejaram. Chovera e desde ontem, um ar mais frio e agradável , enchia - me os pulmões , dando a sensação de bem estar , breve, mas repousante . Um agosto menos frio era esperado .
Paula , no terraço dos fundos, lia uma revista e vez por outra lançava um olhar distraído para nós, lá atrás .Caminhei um pouco pelos arredores da casa, chequei a bomba d’água manual que sabia não mais funcionar ; eu mesmo tinha obstruído o poço, dois anos antes, ajudado por Júlia e Marcos, após descobrir que a água acabara. Mas a alavanca estava ali e me pedia um empuxo, um empurrão.O balanço pendia da jaqueira, cordas apodrecidas , tábuas escuras e rachadas . 
Júlia e Marcos raramente vinham aqui, depois de adultos. Preferiam os amigos e as famílias dos amigos e parentes, vindos dos seus casamentos ; outras casas . Nanook me acompanhava, andando lentamente em passo desordenado. Ofereci - lhe um pouco d’água , desprezada num ganido breve e irritadiço.
  Acompanhou-me quando abri a porta do galinheiro vazio e entrei , procurando uma pá, colocada no cocho de ração dos pintos.Peguei-a , sentindo o cabo nodoso e firme, ainda com as marcas feitas pelas crianças, quando vinham ajudar em troca de andar a cavalo a tarde inteira , na serra da Sapucaia .
E foram muitos passeios: muitos riscos, muitas marcas, caras sorridentes e zangadas, enfileiradas, ao longo do cabo , até a junção com a folha da pá.Tentei lembrar o destino do canivete suíço usado naquelas marcas, mas desisti. Muito tempo já se passara e a memória do canivete vermelho com a cruz branca , já era algo remoto e quase improvável .
Uma fruta- pão caída ao pé da cerca divisória , além de outras crescidas e verdes, entre as folhagens. Chegando á porteira, acendo um cigarro ; as mãos meio trêmulas , a marca circundando o anular esquerdo é clara e bem definida , ás vezes esfrego o dedo, como se o anel ainda estivesse nele.Coloquei os óculos escuros, sentindo as patas de Nanook rente ás minhas pernas.Fumei o cigarro quase até a metade, olhando a autopista que serpenteava ao longe , com os carros que começavam a concentrar-se no engarrafamento das sextas-feiras.
Retornei ,fui até a garagem.Abri o carro , peguei o smith&wesson no porta-luvas,conferi a carga, coloquei-o no bolso da jaqueta e sentei no banco de pedra sob a amendoeira.  O cão apoiou-se sobre as patas traseiras e me encarou, num olhar cansado e distraído . O focinho disforme e ulcerado, me fez lembrar um velho filme da TV . Levantou e aproximou – se de mim , trôpego e hesitante .
Afaguei-lhe o dorso . Atirei na cabeça de Nanook , que gemeu e tombou junto á tigela d’água. Levantei-me , coloquei-o num saco de aniagem e sepultei-o sob o velho jambeiro, na entrada da mata.Voltei para casa , abri o portão , cabisbaixo e sentindo um frio estranho , aderido aos ossos. .
Levantei a gola da jaqueta e entrei.  Paula não estava mais no terraço.Deitei na rede e fiquei contemplando as vigas do telhado, durante muito tempo. Dormi , até as buzinas já estridentes e os motores acelerados , me lembrarem que já era noite, há muito tempo.

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4 comentários

Marcelo Pirajá Sguassábia

Que nostálgica viagem pelos fantasmas do passado. O final me pegou de jeito, já que tudo apontava para um suicídio. Excelente texto, André. Traga-nos outros!

andre albuquerque

Marcelo, grato pelo comentário.Fazer o que tem de ser feito, mesmo o sacrifício de um animal de estimação, é tarefa das mais ingratas,principalmente para alguém já castigado pela vida.Forte abraço.

Jorge Xerxes

Andre,

Um Ótimo Conto!

"Chovera e desde ontem, um ar mais frio e agradável , enchia - me os pulmões , dando a sensação de bem estar , breve, mas repousante . Um agosto menos frio era esperado ."

"E foram muitos passeios: muitos riscos, muitas marcas, caras sorridentes e zangadas, enfileiradas, ao longo do cabo , até a junção com a folha da pá."

"Voltei para casa , abri o portão , cabisbaixo e sentindo um frio estranho , aderido aos ossos."

Os Ciclos da Vida e a Passagem do Tempo.

Um Forte Abraço, Jorge

andre albuquerque

Jorge:grato pelo olhar e comentário,forte abraço.