quarta-feira, 12 de setembro de 2012

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O ANJO 19 - JANDIRA ZANCHI




O ANJO

19.

     O dia vagaroso firmava-se em um horizonte prolongado, muito vasto, inócuo e ignorante das persistências quase rotineiras das contradições humanas. Alongado no Astro, aquele valente coração compactado, talvez estivesse imbuído da nobreza da silhueta das verdes montanhas.
- Hoje começarei – anunciou. Simplesmente, sem tantas observações e fluências, vou espreitar um pedaço do tempo, compor minha química em festiva vibração com as possibilidades. Prosseguir, isto te assusta ? – ele virava-se com um esgar de sobrancelhas. Imaginou-me para sempre esta senhora, nossa menina apertando-me as pernas, eu a apontar-lhe o lápis, afiando-lhe a fala e os pensamentos, as vontades... também assim estarei, os nós da vida a nós se colam, e, como eu a ela, amamos alguns sem saber a extensão e a perdição desse amor – é melhor ignorar o definitivo – mas, meu bem, continuarei.
- Pois bem, é o que esperava. Confesso que suspeitei, melhor, temi.
- Eu também. Sei do fundo e do infinito e do mistério e da fala das coisas e da nossa integração ao momento, desse instante de sermos partículas na forma que não nos forma... enfim, à partir dessa integridade esperei conseguir em algum momento de dor evadir-me para um espaço de mais poder. Ignoro o porquê, mas despertei no ângulo da angústia e esqueci-me da veracidade da festa. Lembrei-me de que a brevidade resume e expande a totalidade de ser. Apenas esqueci, porém, como vê, consegui resgatar o contacto. Presumo que saiba de tais liminares com muita firmeza.
- Não conhecia o abismo já que não quebro as horas distorcendo-as, magoando-as.
- Você não se magoa. E não é por frieza ou egoísmo, pois parece ser de uma paixão....
- Não me posiciono no deslocamento da imagem, observo-a simplesmente. E quando me agride, participo, envolvo-me. E como você, enfim, o percebe, não suponho a eternidade – sorriu.
- Sempre à frente – ironizou. De onde se originou Ângelo? De algum braço macio da luz?
- Como você já observou sou um pagão santificado, de pouca massa, levitado e destilado, não afeito ao excesso de matéria. Minhas águas, rasas e límpidas, são um pouco cínicas, mas muito fluídas, prazerosas e ainda capazes de amar, desejar seres de pele lúcida assim como você...
     Ela cravou-lhe os olhos de vidrilhos que quase furiosos arrancaram do azul estático um esgar de compreensão.
- O mais fluente e dourado dos rios é o mais profundo e fecundo. Bem o sei.
- Mas te amo.
- Exageras nesses mimos.
- Não, te amo. E viverei desses teus olhos vítreos, dessa vontade tão sábia, que se corrige, que se apruma, se limpa dos cacos, liberta dons que quase invejo. Tão intensos, quase santos, parecem conhecer o sulco e o percurso do verdadeiro humano. Afinal, se migraram os deuses para tua fonte um pouco revolta, de águas...
    Ariane escutava-o. Ele parecia-lhe frágil, enfim vulnerável. Significava que encontrara em si o nódulo da dor e a retomada ao porto da oração. Os olhos lentamente ergueram-se para um ponto do horizonte e depois se fecharam, deixando o corpo assumir uma vertigem doce e modulada, erguido em ondas azuis e vestidas. Sim, novamente encontrava-se em si e não vazada pela idéia. Ângelo era apenas um homem, muito mareado e de vestes muito amplas, mas, como ela também era sequioso de integrar-se na alma e na voz do outro. Sim, tinha o mesmo desejo de unir-se e verificar a orientação do outro, conferir, contradizer, medir, referenciar, evadir para o longo espaço aberto no horizonte. A liberdade e a solidão. E os anos.
     Os dias continuaram sucedendo-se. Assim foram construídos, em ciclos, em afinações. E, olharam-se os amantes no infinito das coisas, cada instante tem um encontro com a dimensão e armação de toda a criação. Esse colar de gêneros e repercussão. Os longos braços da lei.

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