O ANJO
19.
O dia vagaroso firmava-se em um horizonte
prolongado, muito vasto, inócuo e ignorante das persistências quase rotineiras
das contradições humanas. Alongado no Astro, aquele valente coração compactado,
talvez estivesse imbuído da nobreza da silhueta das verdes montanhas.
- Hoje
começarei – anunciou. Simplesmente, sem tantas observações e fluências, vou
espreitar um pedaço do tempo, compor minha química em festiva vibração com as
possibilidades. Prosseguir, isto te assusta ? – ele virava-se com um esgar de
sobrancelhas. Imaginou-me para sempre esta senhora, nossa menina apertando-me
as pernas, eu a apontar-lhe o lápis, afiando-lhe a fala e os pensamentos, as
vontades... também assim estarei, os nós da vida a nós se colam, e, como eu a
ela, amamos alguns sem saber a extensão e a perdição desse amor – é melhor
ignorar o definitivo – mas, meu bem, continuarei.
- Pois
bem, é o que esperava. Confesso que suspeitei, melhor, temi.
- Eu
também. Sei do fundo e do infinito e do mistério e da fala das coisas e da
nossa integração ao momento, desse instante de sermos partículas na forma que
não nos forma... enfim, à partir dessa integridade esperei conseguir em algum
momento de dor evadir-me para um espaço de mais poder. Ignoro o porquê, mas
despertei no ângulo da angústia e esqueci-me da veracidade da festa. Lembrei-me
de que a brevidade resume e expande a totalidade de ser. Apenas esqueci, porém,
como vê, consegui resgatar o contacto. Presumo que saiba de tais liminares com
muita firmeza.
- Não conhecia o abismo já que não quebro as horas distorcendo-as,
magoando-as.
- Você
não se magoa. E não é por frieza ou egoísmo, pois parece ser de uma paixão....
- Não me
posiciono no deslocamento da imagem, observo-a simplesmente. E quando me
agride, participo, envolvo-me. E como você, enfim, o percebe, não suponho a
eternidade – sorriu.
- Sempre
à frente – ironizou. De onde se originou Ângelo? De algum braço macio da luz?
- Como
você já observou sou um pagão santificado, de pouca massa, levitado e
destilado, não afeito ao excesso de matéria. Minhas águas, rasas e límpidas,
são um pouco cínicas, mas muito fluídas, prazerosas e ainda capazes de amar,
desejar seres de pele lúcida assim como você...
Ela cravou-lhe os olhos de vidrilhos que
quase furiosos arrancaram do azul estático um esgar de compreensão.
- O mais
fluente e dourado dos rios é o mais profundo e fecundo. Bem o sei.
- Mas te
amo.
-
Exageras nesses mimos.
- Não, te
amo. E viverei desses teus olhos vítreos, dessa vontade tão sábia, que se
corrige, que se apruma, se limpa dos cacos, liberta dons que quase invejo. Tão
intensos, quase santos, parecem conhecer o sulco e o percurso do verdadeiro
humano. Afinal, se migraram os deuses para tua fonte um pouco revolta, de águas...
Ariane escutava-o. Ele parecia-lhe frágil,
enfim vulnerável. Significava que encontrara em si o nódulo da dor e a retomada
ao porto da oração. Os olhos lentamente ergueram-se para um ponto do horizonte
e depois se fecharam, deixando o corpo assumir uma vertigem doce e modulada,
erguido em ondas azuis e vestidas. Sim, novamente encontrava-se em si e não
vazada pela idéia. Ângelo era apenas um homem, muito mareado e de vestes muito
amplas, mas, como ela também era sequioso de integrar-se na alma e na voz do
outro. Sim, tinha o mesmo desejo de unir-se e verificar a orientação do outro,
conferir, contradizer, medir, referenciar, evadir para o longo espaço aberto no
horizonte. A liberdade e a solidão. E os anos.
Os dias continuaram sucedendo-se. Assim
foram construídos, em ciclos, em afinações. E, olharam-se os amantes no infinito
das coisas, cada instante tem um encontro com a dimensão e armação de toda a
criação. Esse colar de gêneros e repercussão. Os longos braços da lei.
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