I
Deserto. Mais deserto ainda. O quase nada: luz amarela, areia branca. Quilômetros de areia branca. Quilômetros de luz amarela. Silêncio.
Dois pontos negros no horizonte. Avançando para o horizonte. Dois pontos negros, móveis. Imagens em formação: uma cabeça, duas. Dois braços, quatro. Dois corpos.
Luz e areia. Um velho e um menino. Mãos dadas. Caminhando do horizonte para o horizonte.
A PRIMEIRA VOZ – sessenta, cinquenta e nove, cinquenta e oito...
Menino – Falta muito?
Velho – Anos.
Menino – Quantos anos?
Velho – Uma vida.
A SEGUNDA VOZ – um, dois, três...
Areia e luz. O velho finca os pés a cada passo: raízes móveis. O menino segue sem vontade. Não compreende a natureza da luz, da areia. Segue apenas, nu.
A SEGUNDA VOZ – quatro, cinco, seis...
A PRIMEIRA VOZ - cinquenta e sete, cinquenta e seis, cinquenta e cinco...
Menino – O que é isso?
Velho – É o tempo.
Menino – E quem está falando?
Velho – Não sei. Ninguém sabe quem determina o tempo.
Menino – O que vamos encontrar lá na frente?
Velho – Duas pessoas.
Menino – Duas crianças para brincar comigo?
Velho – Não. Encontraremos um homem e um jovem.
Menino – Não quero encontrar um homem e um jovem. Eu quero outra criança, quero brincar.
Velho – Não há ninguém para brincar. Nunca.
Menino – Então não quero mais andar. Não tem graça nenhuma.
Velho – Devemos continuar.
Menino – Por quê?
Velho – É preciso.
Menino – Está muito longe ainda?
Quilômetros de luz e areia. O horizonte distante.
A PRIMEIRA VOZ – cinquenta e quatro, cinquenta e três, cinquenta e dois, cinquenta e um, cinquenta, quarenta e nove...
Menino – Tudo aqui é muito chato. Eu não quero andar mais. Cansei.
Velho – Você tem que andar.
Menino – Não gosto de você.
Velho – Do que é que você gosta, então?
Menino – Gosto de brincar, gosto de outras crianças.
Velho – Como é que você gosta de brincar se nunca brincou antes? Como é que você gosta de crianças se nunca viu uma?
A SEGUNDA VOZ –sete, oito, nove, dez, onze, doze...
Menino – Não existe mais nenhuma criança?
Velho – Existe mais uma, mas quando ela surgir você não vai mais querer brincar.
Menino – Por quê?
Velho – Porque então você já não será mais uma criança.
Menino – É mentira! Nada muda.
Velho – Tudo muda. Você não percebe porque ainda é muito pequeno. Mas tudo muda. Tudo.
Menino – Mentira, mentira, mentira!!! Eu vou ser criança pra sempre!
Velho – Nós só recusamos aquilo que é possível. Você se recusa a crescer porque sabe que vai crescer.
A PRIMEIRA VOZ – quarenta e oito, quarenta e sete, quarenta e seis, quarenta e cinco, quarenta e quatro, quarenta e três...
Menino – Vou ficar velho, então?
Velho – Vai.
Menino – E você vai morrer?
Velho – Não.
Menino – Como assim? O que vai acontecer?
Quilômetros de deserto, luz e areia. O velho, nu, aperta os olhos para enxergar o horizonte. Sente o início da mudança.
Menino – O que vai acontecer?
Velho – Eu vou permanecer em você. E você permanecerá em mim.
Menino – E não vai acontecer mais nada?
Velho – Será sempre assim.
Menino – Então você mentiu! Nada muda, mesmo.
Velho – Eu não menti. Tudo se transforma.
A SEGUNDA VOZ – treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito...
II
Deserto. Mais deserto ainda. O nada. O quase nada: areia branca, luz amarela. Quilômetros de luz amarela. Quilômetros de areia branca. Silêncio.
Dois pontos negros no horizonte. Avançando. Avançando para o horizonte. Dois pontos negros, móveis. Imagens em formação: uma cabeça, duas. Duas pernas, quatro. Dois corpos.
Luz e luz. Um homem e um jovem. Passos deixando vestígios na areia. Caminhando do horizonte para o horizonte.
Jovem – O que aconteceu com o menino?
Homem – Ele se foi para voltar.
Jovem – Tornarei a vê-lo?
Homem – Sim, em breve.
Areia branca. Horizonte. O homem e o jovem, nus, avançando.
Jovem – E se eu resolvesse mudar de direção?
Homem – Não conseguiria.
Jovem – Por quê?
Homem – Porque eu vou em frente.
Jovem – Quer dizer que eu sou obrigado a segui-lo?
Homem – Você não está sendo obrigado a nada. Mas estarei sempre em seu caminho.
Jovem – Como farei então para explorar o deserto, conhecer, descobrir? Como poderei aprender alguma coisa preso a você?
Homem – A caminhada até o horizonte também é um aprendizado.
Jovem – E o que tem lá?
Luz e deserto. Pegadas na areia branca. Atrás. Na frente. Um caminho de pegadas unindo os horizontes.
Homem – Dois homens que se descobrem. Dois homens que tocam o conhecimento.
Jovem – E quem são esses homens?
Homem – Você ainda não está preparado para saber.
Jovem – E quando estarei pronto? Quando ficar velho?
Homem – A irritação é própria da sua idade. Tenha calma.
Jovem – A verdade então é que não há retorno? É sempre em frente?
Homem – Sim.
Jovem – E o menino, como voltará?
Homem – pelo horizonte.
Jovem – Como, se nós o deixamos para trás?
Homem – Ele voltará pelo horizonte.
Jovem – Então o que me garante que o horizonte que está às minhas costas não é o nosso objetivo?
Homem – O horizonte em frente.
Jovem – Por que você não fala a minha língua? Eu quero respostas!
Homem – As respostas virão em silêncio. E as perguntas serão eternas.
Jovem – Perguntas e respostas. Isso é a vida?
Homem – Há algumas respostas para algumas perguntas.
Jovem – Você não parece ter perguntas.
Homem – Mas eu as tenho, e muitas. Só que ainda não é a minha vez de fazê-las.
Jovem – E quem vai lhe responder quando for a hora?
Homem – Você.
A PRIMEIRA VOZ - quarenta e dois, quarenta e um, quarenta, trinta e nove, trinta e oito, trinta e sete, trinta e seis, trinta e cinco, trinta e quatro, trinta e três, trinta e dois, trinta e um...
A SEGUNDA VOZ – dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove, trinta...
Deserto. Mais deserto ainda. O nada. O quase nada: luz, areia. Quilômetros. Silêncio.
Dois pontos negros no horizonte. Avançando. Avançando. Avançando para o horizonte. Imagens em formação: uma cabeça, duas. Dois pés, quatro. Músculos. Dois homens.
A SEGUNDA VOZ – trinta e um, trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco, trinta e seis, trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois...
A PRIMEIRA VOZ - trinta, vinte e nove, vinte e oito, vinte e sete, vinte e seis, vinte e cinco, vinte e quatro, vinte e três, vinte e dois, vinte e um, vinte, dezenove...
Silêncio. Os dois homens, um diante do outro. A pausa na caminhada. Silêncio silêncio. Olhos nos olhos. Silêncio silêncio silêncio. O reconhecimento. A compreensão. Silêncio silêncio silêncio. Silêncio silêncio. Silêncio intolerável. A quebra do silêncio.
O primeiro homem – Veio de longe?
O segundo homem – Da velhice. E você?
O primeiro homem – Da juventude.
O segundo homem – Sei, pela minha experiência, que este encontro estava marcado.
O primeiro homem – Sei, pela minha intuição, que este encontro estava marcado.
O deserto. Dois homens frente a frente: um espelho enterrado na areia.
O segundo homem – Aqui será feita a troca.
O primeiro homem – Que troca?
O segundo homem – Você ficará com a minha experiência e eu ficarei com a sua intuição.
O primeiro homem – Essa troca é definitiva?
O segundo homem – Nada é definitivo.
O primeiro homem – É por isso então que viajei por tanto tempo? Para encontrá-lo?
O segundo homem – Você não encontrou a mim. Encontrou apenas uma parte desconhecida de você mesmo.
O primeiro homem – E por que só agora?
O segundo homem – Porque aqui é o centro, o ponto de equilíbrio. O lugar onde as forças se tocam e se renovam.
O primeiro homem – Um círculo, um círculo perfeito?
O segundo homem – Um círculo, sim, mas nunca perfeito. Nós descrevemos uma trajetória oposta para acabar num mesmo ponto, mas isso é apenas ilusão. Nunca nos encontraremos de fato. Partiremos para o infinito da existência e novamente passaremos um pelo outro, mas sem que isso caracterize um verdadeiro encontro. Breves momentos como este, e nada mais, porque estaremos sempre rumando para objetivos diferentes. Sempre.
O primeiro homem – Então eu ainda serei.
O segundo homem – Sim. E eu voltarei a ser.
O deserto. O centro do deserto. Os dois homens apertam as mãos. Despedem-se.
A SEGUNDA VOZ – quarenta e três, quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete, quarenta e oito...
A PRIMEIRA VOZ - dezoito, dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, treze...
III
Deserto. O quase nada. Silêncio.
Dois pontos negros no horizonte. Avançando. Avançando para o horizonte. Um homem altivo, seguro. Um jovem mal adaptado às pernas, que hesitam na areia.
Jovem – Tenho a sensação de estar abandonando alguma coisa.
Homem – É apenas sensação.
Jovem – Como pode afirmar isso?
Homem – Eu sei.
Jovem – Sabe também o que acontecerá quando chegarmos ao fim?
A PRIMEIRA VOZ - doze, onze, dez, nove, oito, sete...
Homem – não há fim.
A SEGUNDA VOZ – quarenta e nove, cinquenta, cinquenta e um, cinquenta e dois, cinquenta e três, cinquenta e quatro...
Jovem – Seremos ainda os mesmos quando cruzarmos o horizonte?
Homem – Seremos outros, mas ainda os mesmos.
Jovem – Não compreendo as suas palavras.
Homem – As respostas virão em silêncio. E as perguntas serão eternas.
A SEGUNDA VOZ – cinquenta e cinco, cinquenta e seis, cinquenta e sete...
Jovem – Eu poderia jurar que estas palavras já foram minhas, mas estou confuso. É como se algo estivesse mudando.
A PRIMEIRA VOZ - seis, cinco, quatro...
Homem – Tudo muda, infinitamente.
IV
Deserto. Silêncio. Dois pontos no horizonte. Avançando para o horizonte. Imagens em formação: um velho e um menino. Nus.
A PRIMEIRA VOZ - três, dois, um...
A SEGUNDA VOZ – cinquenta e oito, cinquenta e nove, sessenta...
Menino – Falta muito?
Velho – Anos.
Menino – Quantos anos?
Velho – uma vida.
A PRIMEIRA VOZ - um, dois, três...
A SEGUNDA VOZ – sessenta, cinquenta e nove, cinquenta e oito...
1 Comentário
Dois viandantes e suas sombras, quem sabe num "vanishing point" da vida,em bela narrativa.Parabéns.
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