LUNA
2.
Por que temeria a solidão de uma madrugada se cada vez era mais só em
sua cela afastada do núcleo da nave – as vozes do coro fazendo eco distante de
tempos em tempos? Entretida com suas miniaturas e seus poemas varava assim os
fins de tarde e as noites depois de uma ceia frugal.
Era consenso que ela precisava sonhar, enamorar-se das longas árvores,
que mantinha com os elementos e o céu uma estranha sinfonia, de poesia e
calmaria. Tanto os monges e monjas como os bons aldeões admitiam, com alguma
tranqüilidade, pessoas assim. Volta e meia apareciam alguns esquisitos naquele
reino, poetas ou bruxos, voadores do ar ou domadores da força, pessoas que
afirmavam sua individuação nas boas coordenadas daquele rebanho.
- Sempre acabam por encontrar
encantos ou espantos – admitia Amilton, o sisudo asceta que dirigia a
comunidade.
Ele mesmo era um estranho sacerdote. Deixava livres os libertos e os
indigestos. Podiam, se quisessem, varar-se em orgias ou desportos ou fazer-se encantadores
de serpentes e transformadores da natureza, não importava. E, de todos os
insurretos, aquele bom mestre mais se encantava é dos poetas. Protegia-os e,
muitas vezes, levava-os para habitarem o
palácio, facilitando-lhes os ócios, fornecendo-lhes os meios de exercerem sua
arte em versos, telas ou árias... parecia completar-se com esses filhos das
águas.
Dizia aos seus mais chegados auxiliares que para bem governar era
princípio e base ceder o espaço da liberdade, dos dissidentes.
- Eles alimentam a estrutura,
fornecem-lhe o combustível e a correção.
Naquela sociedade de estudiosos, cientistas e agricultores, sã e forjada
na simplicidade cartesiana da disciplina diurna e desportiva, eram amáveis com
os incorretos da alma, do sexo e da força.
- A consciência traça uma tênue
linha e, jamais – Amilton apertava os olhos – consegue domar os impulsos
primordiais.
Como tão bem o aprendera, servia de tema e dissertação. Mas assim o
fizera. E elegera Mona quase uma filha, ainda que não fizesse dela uma
discípula e a admitisse como mais uma diletante em seu seleto círculo de
conveniências.
Assim vestida, a moça, de corpo forte e seios altos, deixava-se arrastar
por sua pulsão sensorial, buscando paz e sensualidade na natureza. Vez em quando
encontrava um regato que se desviara de um curso previsível, perfumes exóticos
cuspidos da floresta de eucaliptos, a companhia de mulheres que cediam seus
corpos a muitos homens e diversos desejos. Cismava, desejava algumas vezes. Em
outras se reunia por alguns dias com a família dos aldeãos, compartilhando de seus
trabalhos e refeições. Como muitos outros habitantes do monastério, dava aulas
na escola da aldeia. Participava de feiras literárias, de dramatizações.
Preferia desenvolver essas atividades junto ao povo do que na companhia de
príncipes e sacerdotes. Nos habitantes do Mosteiro apreciava os cânticos, os
rumores eruditos, seus feitiços sacros e milagrosos, os pátios construídos e
desobstruídos de vasos e arcos, a solenidade das belas manhãs.
Mas, era sentir o primeiro murmúrio da tarde e fugir-lhes, deixar-se ao
seu bel prazer nos longos caminhos sem malícia ou destino. Sempre havia um
pássaro, uma criança, um recanto, as folhas caídas, uma nova árvore. Sussurros,
murmúrios, confidências da noite que se balançava no Cosmo enviando freqüências
e paragens que não se mediam com aquelas fibras. O corrupto e dissoluto leito
do mistério. O vôo e seu decoro. Ali, naquele pouso de consciência forte e
austera, porém, alegre, tranquila. Pois, ainda ali, infiltravam-se as muitas e
completas vibrações da vida, que não se sabia, que virgem, vadia e selvagem,
apenas vivia.
2 comentários
Que sejam abençoados os esquisitos, que fiquem em paz os estranhos, benditos todos os poetas...porque eles mostram que, neste mundo, ainda é permitido sonhar.
Um grande abraço, e obrigado pela sua visita. Volte sempre!
Bíndi e Ghost
Acho que nós, os poetas, somos os precursores de uma humanidade que está, lentamente, acordando para a oração com a sua alma. Obrigada pela simpatia
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