sábado, 8 de dezembro de 2012

1

DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 7


O que eu queria?
Da minha vida, o que eu queria? Um dia eu soube?
Já era noite agora e eu tinha me sentado no sofá-cama xadrez de roxo, amarelo e rasgos. Um Jack Daniel’s puro era o que eu queria, mas bebi um gole grande e quente de uma das minhas cachaças. Gosto de álcool na língua, eu gostei de sentir, talvez pra tentar apagar o gosto de outras muitas línguas que deviam ter passado pela minha língua na noite brumosa anterior, que eu tinha esquecido por completo. Sabia apenas que: eu não tinha mais emprego, eu acordei de ressaca e pelada. Então, concluo ainda hoje sem lembrar: eu devo ter bebido e dado a noite inteira, com ou sem intercalar as duas supracitadas ações.
Era isso o que eu queria?
O que eu queria?
Que vontade de ver de novo Outono em Nova York, A Casa do Lago, Benjamim Button, qualquer coisa mais ou menos triste que me lembrasse amor, isso que eu não tinha. Que vontade de conseguir cantar ou tocar qualquer música que me lembrasse amor, isso que eu não tinha. Mas só me vinha à mente a voz de Júlio cantando, enquanto eu ia embora de Paraty pra nunca mais voltar, when I’m alone, all by myself, you’re out with someone else, lovin’, touchin’, squeezin’ each other.
O neon da boate de esquina já tinha começado a piscar. Aí deu tristeza, que era mais nostalgia, nem era tristeza (mas toda nostalgia é talvez um tanto triste, pensei). As luzes coloridas piscando entravam pela minha janela, ritmadas, irritantes, como as luzes coloridas do Natal de interior da minha família, que eu deixei naquele ponto remoto entre a serra e a praia. Luzes piscantes como as da minha infância, que me pareceu, naquele momento, mais distante do que realmente era.
Era a segunda vez naquele dia que eu pensava no Natal, talvez pra me sentir mais miserável lembrando de um passado que podia ter dado certo e da criança doce e talvez feliz que eu devia ter sido, não lembro se fui, com uma família grande e unida numa cidade do interior. Minha mãe arrumava a ceia sobre a toalha de mesa bordada por ela. Joana e Jacinta se maquiavam, vestiam, penteavam e eu ria delas e dizia que a festa junina era seis meses depois. E agora elas deviam se reunir pra rir de mim, me fazer vodu e desejar tudo de mau que a vida pudesse me dar.
Se eu pudesse dizer algo a elas, eu diria: invistam no vodu, que está dando certo!
O último gole da minha cachaça desceu rasgando. Senti a tontura quase imediata.
O que eu queria?
Cambaleei até a janela, debrucei no desvão. Tinha fila na porta da boate e gente sentada em redor das mesas do bar. A lua era crescente-quase-cheia e o ar da noite estava úmido de verão. Casais e amigos estavam felizes conversando, a música ecoava no ar de fevereiro. Tudo tão simples lá fora.
Quis querer me matar, mas acabei não querendo.
Então, o que eu queria?
Talvez descer, cantar com o músico, cantar o músico etc. etc.?
Amanhã haveria sol, daria praia. Praia me lembrava juventude. Decidi que preferia que não houvesse sol nem desse praia, pra eu não me lembrar do tempo dos meus sonhos ainda vivos.
Mas já era tarde, Isabel, eu já tinha lembrado. E você estava sempre lá. Na verdade, Isabel, você esteve sempre aqui, morando na minha lembrança, em todos esses anos distantes depois de eu ter ido embora de Paraty, de você ter tentado vir embora também e ter se dado pior impossível. Você sempre foi tão ingênua, Isabel, tão dependente. E sempre quis ser tão diferente do que você de fato é.
Eu ia dizer “essencialmente é”, mas já não sei se acredito em essência inata, or something.
Você casou, deve estar feliz. No fundo, acho que você sempre nutriu esse tipo de esperança de novela. E eu sei que eu não posso roubar de novo a sua paz e te arrastar pro meu abismo miserável, como eu já fiz um dia. Você deve estar bem agora, Isabel, com uma casa e um emprego e um marido que te ame e talvez um filho, quem sabe dois, a vida normal de pessoas normais como você. Você queria, mas nunca soube ser diferente. Você é alguém muito comum, Isabel, apesar das circunstâncias.
Você queria o meu cigarro, a minha bebida, o meu violão e as minhas roupas. Você me achava tudo aquilo que você queria ser. Talvez pra você, agora penso, fosse um status estar comigo, fosse uma demonstração de poder fingir que era eu, me copiar. A menina de quem eu, na infância, na primeiríssima infância, ri com toda a força porque tropeçou. Apanhei em casa, te pedi desculpas na frente da turma inteira, tive que pedir perdão na igreja, porque a minha mãe era bordadeira e religiosa, tudo tão humilhante, e te odiei. Não sei quando comecei a talvez te amar exatamente pelo que você era: a menina de pernas tortas que eu via tropeçar e de quem eu via todos rirem. Talvez por não ser mais eu a rir (e só eu podia, who knows?), talvez porque, se eu tinha sido humilhada em criança por ter rido de você, então todos que rissem de você tinham que ser humilhados também, ou talvez por pura piedade pela menina de pernas tortas tão só (as duas primeiras opções, provavelmente), eu tenha começado a te defender. E a dividir contigo, como com mais ninguém, o meu mundo.
Eu era forte, você achava. E você não era, você sabia. Então, você mergulhou em tudo de pior que eu te dei. Você perdeu sua paz, quase perdeu sua família.
Nunca conheci quem você foi depois de tirar da cara a maquiagem de minha caricatura, depois de você estar casada e quem sabe feliz.
Não, eu não podia roubar sua paz novamente, te telefonando num sábado à noite de um fevereiro quente e úmido lá fora.
E quem disse que eu me importava com isso, ou com você, ou com qualquer outra coisa, até comigo?
Então, com a esperança de quem não quer que dê praia, eu pensei que talvez ainda tivesse você.
É por isso, Isabel, que estou ligando.

1 Comentário

Jorge Xerxes

Milena,

Lendo e Gostando!

“...qualquer coisa mais ou menos triste que me lembrasse amor, isso que eu não tinha.”

“E sempre quis ser tão diferente do que você de fato é.”

Um Beijo, Jorge