- Feliz Natal e boa noite , meu pai .
Roberto foi o último a sair . Aquela
frase , repetida já há tantos anos , continuava sem exprimir absolutamente nada
.Mas os anos vão passando, levando tudo : os vivos , os mortos e os morto –
vivos , de cambulhada .Eis – me sozinho
. E inútil . Um velho alquebrado numa cadeira de rodas , uma mistura patética
de artrite e diabetes a infernizar meus sobreviventes , aqueles a quem nunca
amei de verdade , porque nunca permitiram e nem fiz a menor questão de ser
querido. Manobro a cadeira de rodas na
entrada do prédio , a tempo de evitar o esbarrão do
novo vizinho , sobraçando uns discos e uma garrafa de whisky . Desculpa – se pela pressa ; no sorriso
simpático tresandando a álcool , deseja – me um Feliz Natal , em cortesia
improvisada.
Mas nem sempre foi assim . No tempo das vacas
gordas ,toquei nas melhores bandas ,
elogiado até na Down Beat ! Muita grana no bolso disputando espaço com os
bilhetinhos do mulherio . Dagmar sabia
tudo , mas fazia-se de otária , porque em casa , tudo do bom e do melhor pra
negrada toda , até aqueles vampiros banguelas dos pais dela , sempre uma
mordidinha : mil daqui, quinhentos dali . E a mídia ? Babando e endeusando : o
grande Batista , a fera do sax , músico completo ,encarando tudo , bossa nova ,
jazz ,bebop , cool , o diabo a quatro mais que chamassem de jazz .
Claro, enchia a cara e puxava uma
erva ,mas todos faziam .E hoje? Ah ! Hoje eu seria um frade carmelita ,não
descalço, pois precisaria dos dois pés sem sapatos e cadê pé ? A doença
entregou á faca dos médicos .Horrível , a sensação de morto – vivo que a
gangrena dá : apodrecer em vida , só faltando os urubus de verdade me
beliscarem .
Então , fui ficando sozinho em lentas
e dolorosas parcelas : saí de casa, a saúde piorou , cresceram os filhos em
ódio e em estatura , os colegas sumindo , aparece a artrite que me aleijou
rapidinho as mãos e a merda está feita .Olha que hoje é dia de Natal .Ontem, na
véspera , só eu e dona Vandira , a empregada .Trocamos um brinde de cidra
comprada com o dinheiro dela , servido
em copo de requeijão . Lembro dos colegas de banda , as fotos na parede já meio
amareladas , mortos ou esquecidos o que dá no mesmo. Uma manhã e tarde inteiras
de recordação ; aquilo que foi mas a memória não quer aceitar , nem consegue
jogar num canto escuro e silencioso,nem no Natal.
Lembro do tempo de desquitado , dando
murro em ponta de faca , a doença cobrando as promissórias vencidas . Já
amputado , pedi humilhado para voltar para casa . Dagmar concordou , contra
tudo e todos .De arrimo a escorado , aqui estou . Feliz Natal, Batista cotozinho
, que Satanás marcou para não perder de vista .
As fotos na parede , são cusparadas
do destino não na minha cara , mas na minha alma .O corpo se defende , mas a
alma não , acolhe e recebe tudo . E a solidão dói tudo que tem num dia assim , porque
hoje percebi quanto ódio de mim é abafado pelos meus filhos, três visitas, três
caras de ódio enrustido e engasgado . Sozinho de repente.A TV ligada , a
empregada de folga , eu aqui, rangendo os dentes de
compaixão e ódio a mim mesmo. Pra mim , basta .
Lacro com jornal as brechas das portas e
janelas , fecho a porta da cozinha , abro a válvula do gás , lentamente . Serei
encontrado bem rosadinho de tanto gás e espero , todo cagado também , dando
trabalho extra aqueles miseráveis.Acomodo a cadeira de rodas ao lado da mesa ,
fico na maçaranduba do tempo , olhando o relógio da parede .
O apartamento vizinho, um barulho só
.Que surpresa terão amanhã ! Começo a sentir
o cheiro do gás cada vez mais forte, subindo , espalhando-se e tomando tudo .
Escrevo: lutei todas as lutas, pra mim basta e coloco o papel encima da mesa.
As coisas começam a parecer escuras e distantes.
A vizinhança , na dolce vita ; alguém
começa a curtir um som . E que som ! Charlie Parker com Dizzie Gillespie em
Night in Tunisia ! È preciso ter parte com Deus ou com o Diabo para tocar assim
. O velho coração acelera , o corpo esquenta numa febre estranha e feliz . Parker
vai em frente , fazendo esplêndidas misérias naquele sax alto ,
Gillespie não se faz de rogado e por
um momento me fazem pensar que talvez exista algo além dessa merda toda em que
passamos a vida á patinar .
Começo a chorar de repente, de emoção
besta , de medo da vida , da morte, de mim mesmo , de tudo , enfim .Empurro a
cadeira até o fogão e desligo o gás . Feliz Natal , Charlie Parker !
2 comentários
Exxcellentte Amigo André!
"Gillespie não se faz de rogado e por um momento me fazem pensar que talvez exista algo além dessa merda toda em que passamos a vida á patinar."
Feliz Natal!
vvivva a vvida!!! Jorge
Jorge: a vida começou a fazer sentido para o Batista talvez graças á musica;meus votos que para nós sempre exista uma boa e forte motivação para seguir adiante.Feliz Natal,excelente ano novo,amigo.
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