Leonardo Boff
* Leonardo Boff escreveu 'O sol da esperança: Natal, histórias, poesias e símbolos' (Mar e Ideias, Rio, 2007)
O Natal representa sempre oportunidade de voltarmos ao cristianismo originário. Em primeiro lugar, existe a mensagem de Jesus: a experiência de Deus como Pai
com características de mãe, o amor incondicional, a misericórdia e a
entrega radical a um sonho: o do Reino de Deus. Em segundo lugar, existe
o movimento de Jesus: daqueles que, sem aderir a alguma confissão ou
dogma, se deixam fascinar por sua saga generosa e radicalmente humana, e
o têm como uma referência de valor. Em terceiro lugar, há as teologias
sobre Jesus, já contidas nos evangelhos, escritos 40-50 anos após sua
execução na cruz. As comunidades subjacentes a cada um dos evangelhos
elaboraram suas interpretações sobre a vida de Jesus, sua prática, seu
conflito com os as autoridades, sua experiência de Deus, e sobre o
significado de sua morte e ressurreição. No entanto, cobrem sua figura
com tantas doutrinas que se torna difícil saber quem foi realmente o
Jesus histórico que viveu entre nós. Por fim, existem as Igrejas que
tentam levar avante o legado de Jesus, uma delas, a Católica, com a
reivindicação de ser a única verdadeira guardiã de sua mensagem e a
exclusiva intérprete de seu significado. Tal pretensão torna
praticamente impossível o diálogo ecumênico e a unidade das Igrejas a
não ser mediante a conversão.
Hoje tendemos a dizer que
Jesus não pode ser apropriado por nenhuma Igreja. Ele pertence à
humanidade e representa um dom que Deus ofereceu a todos, de todos os
quadrantes.
Tomando como referência a Igreja Católica,
notamos que, em sua milenar história, duas tendências, entre outras
menores, ganharam grande curso. A primeira se funda muito na culpa, no
pecado e na penitência. Sobre tais realidades paira o espectro do
inferno, do purgatório e do medo. Efetivamente, podemos dizer que o
medo foi um dos fatores fundamentais na penetração do cristianismo, como
o mostrou J. Delumeau em seu clássico O medo no Ocidente (1978). O
método no tempo de Carlos Magno era: converte-te ou serás passado ao fio
da espada. Lendo os primeiros catecismos feitos na América Latina como o
primeiro de frei Pedro de Córdoba Doctrina cristiana (1510 e 1544),
vê-se claramente esta tendência. Começa-se com a descrição idílica do
céu e depois a terrificante do inferno “onde estão todos os vossos
antepassados, pais,
mães, avós e parentes... e para onde vós todos ireis se não vos
converterdes”. Setores da atual Igreja manejam ainda hoje as categorias
do medo e do inferno.
Outra tendência, mais contemporânea, e
penso, mais próxima de Jesus, põe a ênfase na compaixão e no amor, na
justiça original e no fim bom da criação. Entende que a história da
salvação se dá dentro da história humana e não como uma alternativa a
ela. Daí surge um perfil de cristianismo mais jovial, em diálogo com as
culturas e com os valores modernos.
A festa do Natal se liga a
esta última tendência do cristianismo. O que se celebra é um
Deus-menino, que choraminga entre a vaca e burrinho, que não mete medo
nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta figura.
Arquetipicamente, ele representa o puer aeternus, a eterna criança que,
no fundo, nunca deixamos de ser.
Uma das melhores discípulas de C.
G. Jung, Marie-Louise von Franz, analisou em detalhe este arquétipo em
seu livro Puer aeternus (Paulinas, 1992). Ele possui certa ambiguidade.
Se colocamos a criança atrás de nós, ela deslancha energias regressivas
de nostalgia de um mundo que passou e que não foi totalmente superado e
integrado. Continuamos infantis.
Mas, se colocamos a criança
eterna à nossa frente, então ela suscita em nós renovação de vida,
inocência, novas possibilidades de ação que correm em direção do futuro.
Pois, estes são os sentimentos
que queremos alimentar neste Natal no meio de uma situação sombria da
Terra e da Humanidade. Sentimentos de que ainda teremos futuro, e que
podemos nos salvar porque a Estrela é magnânima e o puer é eterno ,
porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que ele afunde
totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de
todos os povos. Tudo o mais é vaidade.
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