quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

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A guerra dos cinquenta anos






Anginha no tanque de roupa , a esbravejar ; arma no varal colorido , o ódio multicor . No fogo , a carne queimada de repulsa e raiva , as brasas temperando em fogo bem vivo , a garganta e o tição de uma fúria impotente .Contempla a parede descascada,abrigando  fotos do mundo lá fora e de filhos que nunca teve:uma desdita que não renderá herança .
 Tomé conserta sapatos na bancada polida pelo tempo; de madeira centenariamente enrugada , na pobreza artesã de pai para filho ; tachas no canto da boca , em riso sardônico e metálico .Entre migalhas de silêncio ,  o martelo malha um solado no pé de ferro - bem poderia ser a cabeça da desgraçada, martela- lhe o cérebro a ira cotidiana; mãos odiadas e hábeis,trazem o projeto em couro até a realidade . Um polimento em graxa preta e aziaga, lustra uma guerra de cinquenta anos de pequenos ódios e grandes silêncios .
Anginha vive de luto ; por quê ? Ninguém sabe, nem ela nunca disse.Tomé coloca os cadarços no sapato preto , agora devolvido á bancada , alinhado entre os outros em luzidia e caprichosa submissão . Levanta a gola do casaco, a proteger-se do inverno da indiferença : o ódio conjugal inoxidável em sua frieza , aço resfriado de tantos anos ; nem discutem mais , um grita á cada vez de seu canto e o grito paira no ar sai pela janela ganhando o campo de futebol em frente , sensações grisalhas arremetem contra a grama e as andorinhas.O balde de cólera que nunca enche ,sempre a receber cada gota de fúria contida ; a comoção virou cebola velha , dependurada sobre o fogão de pedra . Hoje ,a gota d’água :
_ Não tem feijão para o almoço de hoje – resmunga a Anginha colérica , em riso maroto, em ruindade antiga e  curtida.
Tomé levantou da bancada , tomou da velha mala de madeira de desenho em xis na tampa retangular e pegador enferrujado , de repente acolhendo mudas de roupa e sapatos ; infelicidade maltrapilha , furiosa e sem remendos.. .
 Olha distraído o fundo ensebado do seu chapéu ; o suor e o nome do fabricante em arabesco amarelo ; coloca-o inclinado sobre a fronte , abre a porta , caminhando em direção a lugar nenhum , cruza o campo de futebol, interrompe a pelada em sua marcha; a rapaziada estática , em muda indignação ,contempla o velho desempenado em passo acelerado e inédito sorriso , de alma leve e flanante , no ocaso da tarde de domingo .







2 comentários

Marcelo Pirajá Sguassábia

Guerra surda e sem vencedores - muito embora um dos combatentes tenha tomado a iniciativa de abandonar o campo minado. Sensacional retrato cotidiano, André. Soberbamente pintado.

andre albuquerque

Um outono da vida mergulhado em discórdia e "liberdade ainda que tarde".Marcelo, muito grato pelo olhar e comentário, meu amigo.Forte abraço.