Anginha no tanque de roupa ,
a esbravejar ; arma no varal colorido , o ódio multicor . No fogo , a carne queimada
de repulsa e raiva , as brasas temperando em fogo bem vivo , a garganta e o
tição de uma fúria impotente .Contempla a parede descascada,abrigando fotos do mundo lá fora e de filhos que nunca
teve:uma desdita que não renderá herança .
Tomé conserta sapatos na bancada polida pelo
tempo; de madeira centenariamente enrugada , na pobreza artesã de pai para
filho ; tachas no canto da boca , em riso sardônico e metálico .Entre migalhas de silêncio , o martelo malha um solado no pé de ferro - bem poderia ser a
cabeça da desgraçada, martela- lhe o cérebro a ira cotidiana; mãos odiadas e
hábeis,trazem o projeto em couro até a realidade . Um polimento em graxa preta
e aziaga, lustra uma guerra de cinquenta anos de pequenos ódios e grandes silêncios
.
Anginha vive de luto ; por
quê ? Ninguém sabe, nem ela nunca disse.Tomé coloca os cadarços no sapato preto
, agora devolvido á bancada , alinhado entre os outros em luzidia e caprichosa
submissão . Levanta a gola do casaco, a proteger-se do inverno da indiferença :
o ódio conjugal inoxidável em sua frieza , aço resfriado de tantos anos ; nem
discutem mais , um grita á cada vez de seu canto e o grito paira no ar sai pela
janela ganhando o campo de futebol em frente , sensações grisalhas arremetem contra
a grama e as andorinhas.O balde de cólera que nunca enche ,sempre a receber cada
gota de fúria contida ; a comoção virou cebola velha , dependurada sobre o
fogão de pedra . Hoje ,a gota d’água :
_ Não tem feijão para o
almoço de hoje – resmunga a Anginha colérica , em riso maroto, em ruindade antiga
e curtida.
Tomé levantou da bancada ,
tomou da velha mala de madeira de desenho em xis na tampa retangular e pegador
enferrujado , de repente acolhendo mudas de roupa e sapatos ; infelicidade maltrapilha
, furiosa e sem remendos.. .
Olha distraído o fundo ensebado do seu chapéu
; o suor e o nome do fabricante em arabesco amarelo ; coloca-o inclinado sobre
a fronte , abre a porta , caminhando em direção a lugar nenhum , cruza o campo
de futebol, interrompe a pelada em sua marcha; a rapaziada estática , em muda
indignação ,contempla o velho desempenado em passo acelerado e inédito sorriso
, de alma leve e flanante , no ocaso da tarde de domingo .
2 comentários
Guerra surda e sem vencedores - muito embora um dos combatentes tenha tomado a iniciativa de abandonar o campo minado. Sensacional retrato cotidiano, André. Soberbamente pintado.
Um outono da vida mergulhado em discórdia e "liberdade ainda que tarde".Marcelo, muito grato pelo olhar e comentário, meu amigo.Forte abraço.
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