terça-feira, 1 de janeiro de 2013

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A MINHA CASA (anos 90) - JANDIRA ZANCHI



Passo a publicar alguns poemas que escrevi nos anos 90 e que andei revisitando. Esse é o mais significativo e tem nove páginas.

chuva negra goteja
tua gota espessa 
depuradora
irônica
goteja verseja
vai esparramando
três cinco sete
quantos matizes
encontrar pelo caminho
em agulhadas finas
de gotas oleosas

vai, não se cansa
continua que eu vicio
faz um ritmo de dança
de suspiro em dia de acalanto
meia água
                      porão
madeira grossa
escura de solidão
tem a fresta tábua no chão.
........................................................
 o céu é cinza mas eu sou nobre
o dia é rápido eu sou vagarosa
cachorros ladram
eu me engajo na caravana do alheio
pinto ramos dourados
uso joias de aluguel
não estou nem aí  nem aí
eles também
e não sei mais quem
que fica sempre à parte anotando, brincando,
de dia A noite de B
aquela estrela fica para C
não dou mais do que dois copos de vinho para você
existe o tempo o contratempo o contrassenso
o bom senso
é tudo uma época  um vai vem
quem sabe depois de você
depois de você de você
de você de você
o que é você?
.................................................
 
 tua  tua
passageiramente tua
eternamente minha
vou dormir para esquecer
que sou tantas
não sei com nascem e renascem
se esquecem adormecem

as várias que acordam e gritam ou calam
e sou tantas que sempre uma e logo nenhuma
que são os outros?
...................................................................................
 de quem é esse chão que amo
que beijo que cheiro
esse chão que me inunda

esse chão que só meu
essas pegadas que só minhas
minha terra que não é minha
nem deles
nunca antes em teu solo
esse amor essa dor.
.............................................................
que perna, que osso
olhos ah, os olhos
cabeça e membros
cabelos, isso de cabelos e
unhas – viram que são unhas
garras
dentes em vozes
silêncio espaços e silêncio
um cheiro ou perfume
a beleza dos teus olhos
teus pés sujos – palavras
acorde da alma

mas quase não faz mais diferença...
..........................................................................
já não faz diferença porque o sono
                               o sono vem
devagar eu já me espreguiço e
não faz diferença
é que quando acordo
quero saber
como viver sem saber?

e eu quero tudo
o que foi o que é
o que virá
se instalar
porque como quando
que ritmo e pressupostos
se tem perna ou braço
ou esqueleto ou cabeça
e olhos em fogo em desvio
em fuga, essas cabeças
que na calada da noite espionam
e constroem abrigos e trincheiras
que não entendo

mas não faz mais diferença...
 ........................................................................................
 
só faz diferença o silêncio de uma noite gelada
cheia de estrelas e certezas
de homens que ficam ruminando queixas
e construindo trincheiras
- outras barreiras –
em seus túmulos moradas

se eles vivessem no máximo vinte e cinco anos eu poderia espalmar minha mortalha e bordar meus signos – hinos e desígnios – e chama-los camaradas
mas, lá, na calada da noite figuras escuras bisbilhotando mágoas e arruinando deuses.
......................................................................................................
agradeço senhor  pela vida que me destes
pelo solo dourado que percorri
pelo mar azul que banhei de prazer
pelo amor que não entendi
pelo filho que me fez feliz
pelos amigos que se configuraram em tipos assim
não sei se anti ou pró
pelas estrelas que ficam girando e girando
pelo momento que se tornou sagrado em meus pés e em meu canto
pela voz pelas palavras
pelos sensores pela alma pelos cravos pelos espinhos

mas, se me desses dois ou três minutos de tranquilidade
sem interrogação – passado ou futuro – no escuro
no novo momento – um daqueles de acerto
o redondo, senhor, comigo aposte no redondo, parece que meu senhor
ainda não me entendeu,  jogue na tinta
carregue nos contrastes e me remeta para uma origem ou passagem
simplesmente me retorne em dias sem mistérios
e lá me deixe de forma que sentada em um banco de jardim
eu me transforme em rosas margaridas matagais pirilampos
eu não sei nominar, mas me deixe a divagar levitar
sei lá que diabo eu me encarregue de inventar
eu presto contas –  o grande cínico
francamente onipotente
eu sei, eu sei,
esse grão de areia essa insignificância
lá se foi o heroísmo a bravata a epopeia o definitivo
a chama que totaliza anarquiza
tá legal tá legal

assim pequena e sem sentido, extensa ou densa, e daí? faz diferença?

cuspo na cara do senhor, eu queria é deixar marcas
arranhar os céus
puxa-lo pelos cabelos e  lamber o sangue e as palavras de deu manto
eu queria urrar no universo inteiro
seus animais façam essa porra funcionar direito
ter sentido norte sul
ter eixos – ponham nos eixos
desdobrem esse limítrofe em coordenadas plausíveis
e me deem uma história que eu possa moldar, que eu possa contar,
na qual eu possa acreditar

mas não faz diferença...

porque vi os rostos contrafeitos e os pés sujos das crianças curvadas
e já vi e já calei e não morri...
.............................................................................................
só faz diferença esse sussurro interior
esse mundo que sou eu e que sou tantas
e parece saber mais do que vocês
mas nem tudo  mas muito
esse mundo que vai revelando segredos
me preparando para o sair de cena
o entrar em cena
o rir da cena
- a não chorar de cena -

essas vozes,  esse hálito que lá dentro tece uma morada
A Minha Casa.

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