quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

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Até Que a Morte Os Separe


O sujeito não conseguia ser discreto. Por mais que tentasse parecer apenas um transeunte, um trabalhador voltando para casa, alguém que vai jantar com uma tia-avó solitária em Botafogo como em toda quinta-feira, sua ansiedade o entregava. Acendeu um cigarro e, logo em seguida, mais sete. Pensou que uma ou duas pessoas descobririam seu disfarce. Permaneceu por muito tempo no ponto de ônibus e praticamente não olhava para a rua. Talvez o porteiro tivesse notado. Alguém haveria de notar. Seus olhos só deixavam as janelas do segundo andar para se fixarem na portaria e tão logo retornarem a elas. Quando as luzes se apagaram, sentiu o frêmito percorrendo sua espinha. Era a hora.

Apagou o cigarro que trazia na boca. Ajeitou o chapéu antiquado enfiado na cabeça e dirigiu-se ao edifício. Acendeu outro cigarro para apagá-lo no instante seguinte. Nos filmes parecia tão mais fácil. Não se lembrava de estar tão nervoso desde o dia do seu casamento. A noiva, linda - parecia mergulhada em chantilly até o pescoço - esbravejava palavrões que até então ele desconhecia. O sogro apanhou o revólver no carro. Brandia a arma aos céus, olhando em volta nervosamente, como se na ausência do noivo pudesse atirar contra qualquer outro em substituição. A sogra desmaiou na escadaria da igreja. Umas poucas mulheres riam. Um dos bêbados, no botequim do outro lado da rua, assistindo a comoção, deu uma cotovelada tranqüilizadora em suas costelas:

- Não se preocupa. Bebo aqui há muito tempo. Todo mês isso acontece com alguém. Daqui vinte anos eles já te perdoaram.

Não era hora de ficar sentimental. Estava ali por um propósito e tinha de manter o foco: a portaria. O elevador se abriu revelando uma senhorinha bastante negra, já curvada pela idade, que saía com dificuldade por conta das muitas sacolas.

Era ela.

Desceu as escadas, acenou com a cabeça para o menino na entrada do edifício - qualquer um, em comparação à sua idade, era um menino - e ganhou as ruas. Ele apagou um cigarro que ainda não tinha acendido, afundou ainda mais o chapéu na cabeça e apressou o passo atrás dela, em especial enquanto passava pela portaria. Quando estava bem perto, pousou a mão sobre o ombro da senhora:

- Dona Corina!

Não fosse o fio de contas que a protegia nos últimos cinqüenta anos, a velha teria desmaiado em plena avenida, nos braços do homem, o que causaria uma comoção popular e arruinaria seu disfarce.

- Desconjuro!

A negra gemeu. Virou-se e arregalou olhos profundamente brancos antes de prosseguir:

- Seu Ronaldo, assim o senhor me mata!

O homem, que também quase vomitou o coração com o susto que o susto da velha lhe deu, estava suando e tremendo:

- Desculpa, Corina! Desculpa, pelo amor de Deus! Mas não repete meu nome aqui não!

- Uh hum.

A velha tinha uma interjeição própria, que podia designar qualquer estado de humor, era o uh hum. Ronaldo sentia tanta saudade que não conseguiu esconder um sorriso ao ouvir a expressão. Mas durou pouco.

- Seu Ronaldo, o seu Farias quer matar o senhor!

- Eu sei, Corina... Eu sei...

- Dona Elizabeth teve que colocar um stênt, o senhor soube?

- Não soube, Corina. Ela tá bem?

- Graças a Deus, né, seu Ronaldo. Não graças ao senhor.

- Desculpa, Corina.

Por um segundo, esqueceu-se que estava sob disfarce em território inimigo, logo adiante da portaria do prédio em que viveu com sua noiva antes de abandoná-la no altar. Tratou de apressar a velha para que atravessasse a rua com ele e pudessem continuar a conversa em maior segurança.

- Você ainda pega o Nilópolis?

- Pego, sim senhor.

- Eu te acompanho.

- Uh hum. Que é que o senhor quer, seu Ronaldo?

Não era um uh hum como o primeiro, Ronaldo soube de imediato. Foram sete anos estudando uh uhns.

- Você também tá chateada comigo, Corina?

- O que o senhor fez foi muito feio, seu Ronaldo.

- Desculpa, Corina.

- Tem que falar é com a dona Débora, não é comigo. Com seu Farias. Dona Elizabeth...

- Eu vou falar, Corina.

- Uh hum. Vai nada. O homem te mata, seu Ronaldo. Tem até disputa na família pra ver quem é que mata o senhor primeiro. Até a Clarinha, imagina, três anos, só brinca de boneca e de matar o tio Lonaldo.

A negra sorriu todos os dentes que não tinha. Ronaldo não achou tanta graça.

- Corina, eu vim te procurar porque preciso de um favor.

- Nem adianta pedir, seu Ronaldo, que essa velha parou com feitiço tem muito tempo.

Ele se benzeu. Passou por sua cabeça que, por vingança, talvez Débora fizesse macumba para que ficasse broxa. Ela era ligada em astrologia, tarô, búzios, macumba, numerologia, cromoterapia, acupuntura, psicanálise ou qualquer outra coisa que fornecesse bem-estar em troca de dinheiro. Ele, por sua vez, temia sua ex-mulher e qualquer coisa que viesse dela.

- Não é nada disso, Corina. Não é feitiço nenhum.

Parou de falar. A coragem lhe faltou. Corina notou e foi gentil, como só ela sabia ser:

- Fala, filho. Que se essa velha puder ajudar ela ajuda.

Pensou que Ronaldo queria entregar, através dela, algum bilhete de desculpas, alguma carta de amor.

- Corina, desde o dia do casamento minha vida nunca mais foi a mesma. Até então eu tinha uma coisa, sabe Corina? Uma coisa sem a qual eu sei que nunca mais vou ser feliz. Uma coisa que me faz falta todos os dias. Uma coisa que eu não consigo substituir.

Ela assentia com a cabeça, enquanto um ônibus se aproximava, obrigando Ronaldo a dizer o que quer que havia para ser dito. Ele suspirou.

- Não vá rir de mim, Corina, mas eu não posso continuar vivendo sem nunca mais comer seu arroz com feijão, purê de batata e frango à milanesa. Você me perdoa, Corina? A Débora nunca ia me passar seu telefone. Eu também nunca que ia pedir. Aceita ir lá em casa um dia da semana que vem me fazer uma comidinha dessas? Eu pago a tua diária toda. Mas por favor, não me negue aquele franguinho à milanesa.

Ela ria de doer as costas. Uma risada mais alta que o barulho do freio hidráulico do ônibus. Ronaldo não sabia se isso significava sim ou não. Tirou um papel do bolso.

- Meu endereço e telefone. Não é muito longe daqui, mas é uma distância segura.

- Terça-feira que vem, pode?

- Mas é claro que pode! Eu deixo a chave na portaria, sem problemas.

Apanhou o papel das mãos dele.

- A faxina ainda é setenta reais.

- Tudo bem, Corina.

- Então o senhor me aguarda que terça-feira eu apareço lá.

Agradeceu com um beijo barulhento nas bochechas magras da senhora. Segurou suas sacolas para que ela embarcasse. Acenou enquanto o ônibus partia, levando a negra sorridente.

Ronaldo estava tranqüilo, enfim. Seu plano pareceu funcionar. Ao menos não foi descoberto, retornou com vida e Corina aceitou. Salivava e estalava a língua ao pensar que comeria seu prato favorito novamente. Não lhe servia qualquer purê de batata com frango à milanesa. Tinha de ser aquele purê de batata com frango à milanesa. Temeu, no entanto, que a velha desse seu endereço à família da noiva, ávida por sangue. Mas conforme os dias se sucederam e ninguém lhe apareceu na porta, convenceu-se da lealdade de Corina. Caso ela liberasse o endereço, no mesmo dia alguém o importunaria o juízo e a saúde.

- Acho que amo essa preta.

Então chegou a terça-feira. E assim, do alto de sua sabedoria secular, sem ter de fazer rigorosamente nada, Corina fez com que Ronaldo finalmente entendesse como Débora se sentiu.

1 Comentário

Unknown

Esse final pegou-me de surpresa =) beleza de texto. Boas linhas Eduardo.