sábado, 26 de janeiro de 2013

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 10



Ela precisava de um nome. (Qual é seu nome, me diz seu nome!, eu pedia. Eu sabia que cedo ou tarde ela ia atender.)
Eu também pedia pra lembrar de onde conhecia aquele senhor dono da cachaçaria. Dúvida comum, eu sei. E talvez ele só tivesse um rosto comum. Mas isso me intrigava naqueles dias como não me intrigaria em dias comuns. E aqueles não eram dias comuns de um julho comum em Paraty. De um inverno qualquer da minha vida.
Minha casa vazia. Uma música triste gotejando pelas frestas da minha veneziana. You make me weep and wanna die. E eu conversando com os meus fantasmas, enquanto lá fora tinha dado praia.
Me peguei numa esperança estranha de que o rapaz começasse a tocar Hollow Man. Mas nada aconteceu.
E isso doeu.
(Rima pobre.)
A pena, tinha valido?
Nunca tive coragem de pronunciar a resposta.
Eu, que era só um nome empilhado entre outros nas estantes, um nome importante, talvez, mas que já não tinha rosto, mesmo pra quem mais me admirasse. Eu, que não tinha quase nada, nem mesmo alguém com quem brigar por abrir as cortinas enquanto eu ainda dormia, nem mesmo paz pra fechar as cortinas e dormir. Eu, eu que tinha me afundado na minha escolha, na minha ilusão, nas minhas páginas. Eu nunca tive coragem de pronunciar aquele não.
Talvez tenha sido isso a me dar tristeza.
E daí então saudade.
Talvez por isso, ou sei lá por que, naqueles dias quentes incomuns eu pensava insistentemente na minha vida fria e úmida do Rio de Janeiro.
Eu saí da casa dos meus pais com dezesseis anos. Na verdade, eu não tinha pais. Tinha uma mãe drogada e um padrasto que não gostava de mim, nem dela. Mas pra ela já tanto fazia, porque ela também não gostava dele. Do meu pai eu não sei, eu nunca soube.
Resolvi arrumar as poucas coisas que tinha e ir embora numa noite qualquer, sem nenhum acontecimento especial que me fizesse mudar radicalmente de vida. Como sempre, minha mãe e meu padrasto haviam brigado após mais uma bad trip. Eu bebia um copo de vodka e fumava um cigarro mentolado que peguei de um amigo de escola. Eu tinha vacilado entre ouvir algum LP do Journey, ou do Deep Purple e agora, Perfect Strangers tocava na vitrola. E eu pensava, pensava, pensava. Jaime homem dentro de Jaime menino, como fruta dentro da casca.
Estava tudo normal. A música quebrando o silêncio pós-pancadaria era o que ecoava na casa e isso era normal. Minha cabeça girava um pouco e o cigarro acalmava minha angústia por viver aquela vida, o que era também muito normal. Deliberei feito criança, porque fingir inocência sempre me acalmava: se eu fosse o Steve Perry, minha vida não seria assim. Depois ri. E tudo isso era tão normal.
Nada de novo, nenhuma tempestade antes da bonança.
Eu só quis ir embora e fui.
Juntei os meus livros e discos, as minhas roupas, três potes de maionese com conchas do mar e pouco mais. Duas malas e uma mochila. Peguei a bicicleta no biciletário do prédio de subúrbio onde eu morava. Botei a mochila nas costas e amarrei as malas na grade atrás do selim. Não estavam pesadas, eu não tinha quase nenhuma bagagem aos dezesseis anos. Então pedalei a noite toda, de Madureira até o centro do Rio. Só porque eu quis ir embora.
E fui.
Nunca fui muito de impulsos, eu achava. E sabia que era mentira. Porque, quando eles gritavam, eu os seguia sem escolha, como se tivesse sido escrito assim. Um impulso, então. Me fez abrir a porta e sair sem deixar nenhum bilhete sobre a mesa.
Fui me refugiar por alguns dias no apartamento de um primo no centro da cidade. Os dias, que eram pra ser poucos, se tornaram três anos. Gustavo. Acho que gostou da minha companhia, ou de mim. Ele me olhava olhar pela janela os bares e boates com muita gente e a rua com muitos carros. E me dizia que eu queria fugir.
Ele soube disso antes de mim.
Gustavo não tinha pai nem mãe nem irmãos e nem a tia, que tinha se matado e me deixado órfão algumas semanas antes de ele pegar a doença indecifrável. Porque o nome e o medo só vieram depois de o Gustavo morrer.
Acho que foi a solidão do Gustavo que me deixou de herança o apartamento na rua do Riachuelo e tudo que estivesse dentro daquelas paredes. E agora eu tinha uma casa. Um quarto, tacos de madeira, paredes crespas e úmidas, muito frio, um sofá xadrez roxo e amarelo.
Gustavo tinha me indicado pra um emprego de vendedor de livros, talvez por me ver lendo compulsivamente nos momentos livres, buscando uma saída que não há.
Meu primo me deixou muitos livros e uma máquina de escrever, em que ele datilografava loucamente poemas em inglês na esperança de ser como Robert Herrick ou Percy Shelley, seus preferidos.
Ele costumava me dizer sem sotaque:

Gather ye rosebuds while ye may,
Old time is still a-flying
And this same flower that smiles today
Tomorrow will be dying.

Ele me dizia sem sotaque, tinha passado na Inglaterra muitos anos até decair na solidão daquele apartamento.

The glorious lamp of heaven, the sun,
The higher he's a-getting,
The sooner will his race be run,
And nearer he's to setting.

Eu entendia muito pouco naquela época, então ele começou a me ensinar.

That age is best which is the first,
When youth and blood are warmer;
But being spent, the worse, and worst
Times still succeed the former.

Eu comecei a aprender...

Then be not coy, but use your time,
And, while ye may, go marry;
For, having lost but once your prime,
You may forever tarry.

...e acabei apaixonado pelo idioma.
Quando entendi ao certo o que o poema dizia, o Gustavo já tinha morrido. E eu senti uma vontade imensa de viver.
Pode ter sido essa vontade ou qualquer outra coisa grande e impulsiva ou uma loucura repentina de juventude, que poderia ter fracassado e acabou dando certo, o que me levou a jogar pro alto o meu emprego e o vestibular pra inglês que eu prestaria em dois meses. Escrevi a carta de demissão e voltei correndo pra casa, sentei à máquina de escrever Olivetti verde-claro e comecei.
...Quando eu era criança, eu vivia sempre de saco cheio...
Em seis meses, eu tinha o meu primeiro romance. E um desvio na coluna. O condomínio estava atrasado, a luz e o telefone tinham sido cortados, eu não tinha mais o que comer. Mas estava feito.
Foi largando empregos, atrasando contas e passando fome que vivi meus anos no Rio de Janeiro. Escrevi assim onze romances até me exilar em Paraty, onde escrevi mais quatro.
Quando eles vinham gritando pra nascer (os meus impulsos, meus fantasmas), eu largava tudo e ia jogando um por um pra fora de mim, suas histórias, suas vidas, seus caminhos, suas escolhas, até que a capa os esmagasse eternamente. Só assim eles poderiam existir.
Eu lhes dava vida porque eu não tinha escolha, era preciso. Como se tivesse sido escrito assim.

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