quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

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O magnetismo em Serra Morena

 
Andréa Fátima dos Santos nasceu em São Paulo no ano de 1975. Ela cresceu na cidade industrial de São Bernardo do Campo – SP, onde o pai tinha uma loja de assistência técnica. Os seus amigos eram filhos de operários. Mas a pequena Andréa gostava mesmo era de passar suas férias na casa de seus avós maternos Nico e Maria no alto da Serra Morena, próxima a Carmo do Rio Claro – MG. Andréa não conheceu os seus bisavós, Adolfo e Donana, que foram fulminados por um raio enquanto dormiam; deixando órfãos os irmãos Nico, Antônio e Júlia; todos com menos de dez anos. A casa onde ocorreu o evento traumático também era outra, ficava no vale – e não no cimo – que depois veio a ser tomado pelas águas da represa de Furnas. Andréa e seus pais não tinham o hábito da leitura. Ela conta que em sua casa, em São Bernardo do Campo, havia apenas dois livros: um de receitas e a Bíblia, ambos intocados.

“Um dia ao ano, o Sol se botava global dentro da casa de Eneido, a caverna inteira se iluminava, os azuis das corujas viravam piscinas. Durava o tempo de debulhar uma espiga, pegando a segunda, já era minguante a luz na abóboda.”

Acontece que Andréa era muito curiosa, imaginativa e gostava de escrever. Era-lhe natural suas ideias transcenderem a realidade, nua e crua, avançando as fronteiras do fantástico e do maravilhoso. Aos 17 anos Andréa mudou-se para São Paulo, onde foi morar com o seu namorado, fotógrafo, alguns anos mais velho. Ela passou então a adotar o pseudônimo de Andréa del Fuego – pela cor vibrante do fogo e pela sonoridade peculiar advinda da conjunção dessas palavras. E foi a partir daí que publicou a trilogia de contos “Minto enquanto posso” (2004), “Nego tudo” (2005) e “Engano seu” (2007) que a projetaram em definitivo no cenário da literatura brasileira contemporânea. Assim, o que poderia ser inicialmente encarado como uma fraqueza (ou fuga) veio a tornar-se sua grande virtude. É para poucos dominar tamanha energia canalizando-a de forma construtiva em obras de valor estético.

“Estavam anestesiados, outra gravidade debaixo do teto das corujas. O corpo e o pensamento na preparação de algum corte, como a febre antes da bolha estourar, a tontura antes do desmaio, a melhora antes da morte.”

Foi no ano de 2006 que, através de um amigo cuja mãe tinha uma livraria em Curitiba – PR, eu fui praticamente forçado a ler “Minto enquanto posso” e, na seqüência, implorado pelo empréstimo de um raro exemplar de “Nego tudo”. Esse amigo sabia que eu gostava de escrever, mas àquela época não tinha o hábito da leitura. A identificação foi imediata; essa foi uma experiência importante para o meu amadurecimento; a percepção de que a literatura possibilitaria trabalhar determinados conteúdos oníricos e psíquicos constituindo um suporte suave (ou nuvem) para a realidade (cama de faquir). Aconteceu assim de eu me tornar escritor (em menor grau) e também um leitor (principalmente).

“Ia voltar sozinha, como saiu, mesmo que o destino não fosse a Serra Morena. O ponto de origem não foi a paisagem, mas o estrondo na casa dos pais. Disseram que no mar caem mais raios, podia ser atingida por um e voltar para casa.”

Em 2010 Andréa publicou o seu primeiro romance, intitulado “Os Malaquias”, o mesmo sobrenome dos seus avós maternos, e dedicado à vida desses seus antepassados na Serra Morena do início do século passado. A obra lhe valeu o Prêmio José Saramago de 2011. Pelo que li a respeito, o livro nasceu após uma longa gestação em Andréa. A ideia de escrever o romance surgiu de questionamentos quando da morte de sua avó Maria, a esposa de Nico. Sua primeira versão foi escrita entre 2003 e 2005, mas então a obra não se encontrava madura. E o seu tio-avô Antônio, anão como no livro, faleceu enquanto Andréa trabalhava na retomada do romance. Imagino o quanto deve ter sido árdua a tarefa de debruçar-se sobre a história dos irmãos órfãos Nico, Antônio e Júlia; enfim, sobre suas próprias raízes; tanto ancestrais, quanto aquelas de sua infância.

“Maria ria sozinha, lá embaixo a cidade era um buquê de vaga-lumes. Nico pousou o dedo e pôs força. Geraldina desembocou dentro da lâmpada, vibrou em volta da espiral, excelsa. A sala se iluminou nas quinas, os móveis fizeram sombra amena. Maria apagou as velas. Antônio bateu palma olhando para o teto.”

A linguagem é simples, ágil, fluida em “Os Malaquias”. Andréa soube dosar a realidade aos conteúdos oníricos para a construção de uma narrativa compreendendo todo o espectro da vida. Equilíbrio entre os pólos exterior e interior no humano. Creio que este é o magnetismo, o que atrai e torna essa leitura gratificante. Andréa conta: “O Prêmio José Saramago é que pagou o parto que eu queria, com a equipe que eu queria, parto humanizado.” Francisco nasceu no ano de 2012; é filho da escritora com André, o fotógrafo, seu marido e companheiro desde os 17 anos de idade. Atualmente ela é colunista do programa Entrelinhas, da TV Cultura, tendo produzido matérias sobre diversos autores: Murilo Rubião, Roberto Bolaño, Anna Akhmátova, Julio Cortázar, entre outros.
 

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