domingo, 10 de fevereiro de 2013

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Quem é Victoria?


Quem é Victoria?

Na última madrugada, sonhei parte de uma vida.
Nunca, em tempo algum, tive sensação tão profunda e intensa de que um sonho seria uma recordação.
Se agora estou a tentar ordenar o que se passou, confesso que as imagens não apareceram organizadas.
Há lacunas que enevoam momentos, gestos, expressões e a própria razão. Mas também há certezas. Duas, pelo menos. Ela chamava-se Victoria e morreu.

Cheguei a sua casa sem me lembrar de onde tinha vindo. Passou algum tempo desde que estive ali, pela última vez. 
Não toquei a campainha nem bati à porta. Pousei uma carta, de que não me lembro ter escrito, no parapeito da janela.
Os estores impediam-me de ver o interior do quarto. A grade, típica de uma janela de rés-do-chão, era branca. A carta ficou entre a grade e o vidro da janela.
Passaram vários dias. Os estores não foram recolhidos. Ninguém viu a carta.
O que aconteceu entre mim e Verónica não se resume a uma relação amorosa, sexual, de posse. É muito diferente. Partilhávamos um sentimento de altruísmo e bondade…que não é coerente com o que fiz. Estou longe de entender tanto desta história… 

Por alguma razão, afastei-me sem qualquer aviso.
Um dia, como tantos dias em que observei se ela tinha recebido a carta, vi que os estores foram recolhidos e o envelope retirado.
Aproximei-me da janela e espreitei o quarto estranhamente familiar. Estava vazio. Não tinha mobília nenhuma. Consegui ver os raios de sol que nasciam no lado oposto da casa, passavam pelo corredor e se materializavam nos grãos de pó que existiam no ar.
O quarto estava cheio de alegria. Sim, de alegria. Algo de renovador habitava aquela divisão.
Não esperei mais. Bati à porta. Os pais de Victoria abriram, viram-me e ficaram contentes. Convidaram-me para entrar e beber um …chá?...café?... não sei…
Estavam voltados para mim; eu era acariciado pelo sol que entrava por duas ou três enormes e rectangulares janelas.
Não conseguia deixar de olhar para o chão, enquanto me contavam o que tinha acontecido.
Depois de me ir embora, sem dar qualquer explicação a Victoria, ela lamentou-se durante um ano. Deixou de se alimentar regularmente.
Passado algum tempo, ela enamorou-se por um rapaz com quem viria a casar.
Ele deixou-a.
A recaída foi muito forte. Deixou de comer. Os pulmões começaram a recusar-se a receber oxigénio.
A última frase de Victoria morreu sem se completar.
“Mãe deixa-me descansar um…”. Foi o que ouvi na voz da sua mãe.
Aqui vacilo, novamente, embora entenda a irrelevância. Não sei se ouvi “mãe”, nem sei se ouvi “deixa-me descansar”. Talvez tenha sido “preciso de descansar…”
Quando acabou de contar, entregou-me uma caixa com vários objectos meus, que estavam no quarto de Victoria.
Peguei numa cassete de áudio.
Estou a caminhar na rua. Esta é a última imagem.
Quase, a dada altura, consegui registar definitivamente o rosto de Victoria na minha memória, mas no último instante perdi essa possibilidade. Sei, sem sombra de dúvida, que era alta e de cabelo claro, quase loiro.
Victoria era diferente de todas as mulheres. Os seus olhos mostravam bondade, pureza e angústia profundas.

A fronteira entre ficção e realidade dilui-se no sonho. O leitor não sabe se estou a mentir. Não lhe posso esclarecer. Também não sei.
Sinto-me preso a uma necessidade:
Ressuscitar Victoria.
Anseio pela próxima noite.
Talvez nunca venha a saber o que aconteceu, mas sei que no mundo dos sonhos a morte não dura para sempre.
As palavras, essas, combatem o esquecimento.




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